O parto

Ficar de pé de galo o dia inteiro cansa! No portaló o oficial-de-serviço mandava o contramestre reunir a guarnição para o cerimonial à bandeira. Logo após o arriar da flâmula auriverde, rancharia, guardaria a arma no camarote e, desarmado, esticaria os ossos na cama, para levantar-se apenas para a ceia. Entretanto, na ronda de convés um marujo sentado sobre as correntes da âncora no bico de proa do navio causou-lhe cisma. Na aproximação, o tenente viu-o de cabeça enfiada entre as pernas semiabertas, numa prostração que só deixava exposto o cocuruto e os braços pendentes sobre as canelas. Será que já estava grogue antes de cair na farra?

O navio atracara no cais do porto de Salvador pela manhã, não havia mais nenhuma faina a ser feita, a azáfama da baldeação terminara cedo. Mal tocara a licença a marujada debandara. Ficar à bordo à toa é procurar faxina. De mais a mais, na capital da Bahia, o espírito goliardesco dos marinheiros emerge, pois na boa terra todos ficam a fim de uma boa xiba. A guarnição formara para o cerimonial, somente aquela praça estava à garra. Talvez fosse apenas banzo, saudades de dona Maria. Tem dia que não dá mesmo lazeira para oficial. Tocando o ombro do homem, preocupado, o tenente disse em tom ameno:

- Ei! Não pode ficar aí na hora da bandeira. Tem alguma coisa pegando?

- Tenente Paulo... Nhô desculpe. Não atraquei na hora. Já vou pra coberta, respondeu-lhe o marujo, ao pôr o caxangá na cabeça, antes de levantar-se.

- Não, espere-me perto da Praça D’Armas! – ordenou-lhe o oficial por pressentir problemas à vista.

Nos momentos de apreensão Tenente Paulo habituara-se a olhar para o horizonte. O sol crepuscular coloria de carmesim as nuvens sobre a Baía de Todos os Santos. O oficial fixou-o por breve instante, senão se atrasaria para o cerimonial à bandeira.

Muito pouco a vontade, o marujo aguardava seu superior, que ao chegar pediu-lhe que sentasse.

- Aqui? No rancho dos oficiais! – exclamou o marujo por estranhar a intimidade.

- É. O Comandante baixou terra. Sou o mais antigo à bordo, Jesuíno, você está para ser promovido à Sargento, não é?

- Afirmativo.

- Então senta. Notei que está triste. Qual é o caso?

Marinheiro de manobras e reparos, antebraço mais musculoso que o braço à feição do marinheiro Popeye de tanto puxar cabos para atracar ou desatracar navio, bom de faina e de navegar, natural do Recife, pernambucano arretado, cabra macho e do brabo, afeito ao uso da peixeira. Jesuíno retraiu-se avexado.

Mas puxou a voz do fundo do peito e disse:

-Deixa pra lá, Tenente. É caso de família e já tem decisão tomada.

-Não quero me intrometer, mas desabafar comigo pode.

Os olhos de Jesuíno marejaram de lágrimas.

- Fui corneado por minha mulher.

- Tem certeza disso?

- Ela está grávida.

- Mas isso não prova nada.

- Só que nas minhas contas o papai aqui não estava em casa para fazer a sua parte. Nos meses de setembro, outubro e novembro o navio estava em regime de viagem. Fiquei longe o tempo todo. O doutor disse que o bacorinho vai nascer em meados de junho.

A espera do pior, Tenente Paulo perguntou:

- Qual a decisão tomada?

- Depois de o nenê nascer, mato a vagabunda.

Tenente Paulo cofiou o bigode. Jesuíno era a própria expressão do ódio. Naquele momento, sentiu-se cúmplice de um virtual assassino. Sua mente viajava na busca de argumento de persuasão capaz de fazer Jesuíno desistir do sinistro propósito. Fora de cogitações stava quebrar sua palavra de oficial. Mas precisava tentar algo para evitar a tragédia. E, com este objetivo, conduziu a conversa para que fosse posta às claras a consequência do possível desfecho trágico:

- Na festa de Natal você esteve aqui com sua esposa e um garoto pequeno.

- Aquele faz três anos em agosto. Foi feito na forma, é a minha cara. – disse Jesuíno, ao desanuviar o semblante.

- Pois é. Nos seus planos sua mulher vai para o cemitério e você, na condição de assassino, vai para o bailéu e deixa duas crianças órfãs no mundo. Isso é coisa que se faça? Não, Jesuíno, não é justo. Não é cristão! – apesar de ser um agnóstico, asseverou o oficial, pois que em casos muito graves ninguém usa o nome do Senhor em vão. E depois de uma contundente pausa, acrescentou: - Que Deus o perdoe em pensar em tamanha atrocidade, e reflita como você tornará sua vida miserável.

- Quem mandou ela me botar chapéu de viking? Comigo não existe essa história de corno manso. Se eu quisesse ter chifres teria nascido boi. Na minha terra a honra ainda é lavada com sangue.

Tenente Paulo percebeu a inutilidade de insistir naquele momento. Porém, mesmo sem ânimo, disse:

- Como você faz parte da minha Divisão, sei que marcou suas férias para o mês do parto.

- Marquei.

- Sua intenção é cumprir o plano homicida.

- Vou afiar a peixeira para este fim. Mas não tem esse negócio de homicida. Já falei, vou matar por questão de honra. Matilde confessou a traição, mas não disse o nome do malandro. É mais fiel ao outro que ao próprio marido, se ao menos dissesse...

- Teremos mais uns dias para voltar ao Rio de Janeiro e você terá tempo de sobra para pensar nos inocentes.

Nas semanas seguintes, sempre que pode, Tenente Paulo voltou a tocar no assunto, mas o máximo que obteve de Jesuíno foram evasivas. Não adiantava bater na mesma tecla, o homem estava mesmo irredutível. O navio atracou no Arsenal da Marinha no final de maio. No dia da atracação, Tenente Paulo e o Cabo Jesuíno estavam de serviço. Foram mais algumas horas de conversa estéril e, afinal, restou ao oficial fumar seu cachimbo com estranha sensação do dever cumprido. As férias do marujo começariam na semana seguinte.

No primeiro dia de férias, quando chegou à sua casa, Jesuíno encontrou o portão escancarado. Trancou-o após entrar e percebeu que o quintal estava sujo, cheio de folhas secas e seco também estava o jardim. Algo incomum acontecia. O jardim de sua casa sempre fora viçoso. Sua esposa jamais descuidara de molhar as plantas. Mas agora as flores de dona Maria estavam murchas. Estranhou mais quando abriu a porta da casa. Apesar do sol a pino, estava tudo escuro. As janelas fechadas guardavam um ambiente abafado, soturno. Correu ao quarto onde iluminado por duas velas votivas dispostas nas mesinhas de cabeceira da cama, sua esposa jazia inerme no leito conjugal.

- Matilde! O que está acontecendo? – perguntou Jesuíno debruçado sobre a mulher a sacudir-lhe os ombros.

Dona Matilde demorou um pouco a responder, virou-se e ao recobrar a consciência disse:

- Dores, Jesuíno, dores de cabeça terríveis.

- Onde está nosso filho?

- Na casa de mamãe. Deixe-me dormir, por favor, Jesuíno, me deixa em paz.

Jesuíno sabia que a mulher não o amava mais, não estranhou que nem sofrendo apelasse por sua ajuda.

“Que se dane! Cadela! Seu destino está traçado. Deixe estar, só mais um pouco, umas semanas, talvez dias...” – refletiu Jesuíno, enquanto ia para a sala abrir as janelas para a luz entrar.

Matilde não era desleixada, mas a casa estava uma pocilga. Havia um resto de frango sobre a mesa e as formigas faziam a festa. Fedia lixo na cozinha. Jesuíno jogou tudo fora, limpou a casa e lavou o quintal. Tomado por um acesso de fúria que só terminou após ariar a pia da cozinha com sapólio e sabão. Fez um café, bebeu, acendeu um cigarro e foi sentar-se na varanda da casinhola de meio de terreno. Fumou mais um e mais outro e mais um cigarro atrás do outro, como um pai na antessala de maternidade à espera do filho que vai nascer.

Será que Matilde estava com fome? Não percebera já era quase noite. Poderia fazer um sanduíche, uma pizza, sei lá, qualquer coisa. Foi perguntar o que ela gostaria de comer. Mulher grávida tem seus desejos. Mas Matilde roncava, roncava como nunca roncara antes, pois até àquele dia nunca roncara. Jesuíno em vão tentou acordá-la. Quando desistiu foi à padaria para comprar pão e mortadela.

Bebeu cerveja preta com o sanduíche de mortadela e dormiu no sofá da sala, de barriga cheia e cansado de tudo. Dormiu um sono irrequieto, povoado de pesadelo com pássaro a voar para o cimo de um morro em fuga do mar bravio. Só acordou com o estrondo da queda da mulher ao chão. Matilde debatia-se contra os demônios que insistiam em possuí-la. Sua boca espumava e seus olhos estavam virados para cima.

Jesuíno saiu em correria até à casa de um campanha a fim de pedir ajuda. O marujo pegou seu carro e juntos os dois buscaram a gestante para levá-la ao hospital mais próximo da vizinhança.

No dia do regresso de férias de Jesuíno, por essas coincidências que acontecem, o Tenente Paulo estava de serviço no portaló novamente. Mal pisou no convés, a praça foi interpelada pelo oficial:

- E aí, Jesuíno, tudo bem?

- Tudo, agora está tudo ótimo.

- Sua esposa, como está?

- Morreu no parto. Não fez o pré-natal direito. O médico fez o possível, mas foi inútil. Disse que foi eclampsia. A criança passou uns dias no hospital. Agora está na casa da avó.

- É menino?

- Não, menina, Marina.

Muitas vezes na vida o destino é um parto, no caso do marujo Jesuíno, na má hora da mulher adúltera, modificou os rumos em cento e oitenta graus. Jesuíno assumiu a inocente como filha e acabou por se afeiçoar, de fato, à menina. Tão pequenina, coitada, indefesa face ao mundo cão!

Três anos depois, numa outra comissão, licenciado, o Tenente Paulo passeava no Mercado Modelo de Salvador, recentemente reinaugurado após a restauração determinada pela ocorrência de um incêndio que destruíra suas antigas instalações. Ouviu que alguém o chamava:

- Tenente Paulo! Tenente Paulo!

Era Jesuíno, movimentado há dois anos para servir na Força de Minagem e Varredura, constituíra nova família e passeava com esposa nova e os dois filhos. Morava então em Roma, bairro da Cidade Baixa, subúrbio soteropolitano, situado entre o centro da cidade e a colina da Igreja do Nosso Senhor do Bonfim. Marina parecia mais com a madrasta do que com o pai.

- Esta aqui é dona Maria. Está esperando nenê, que vai nascer em janeiro.

O Tenente Paulo cofiou o bigode, estendeu-lhe a mão e disse:

- Muito prazer, espero que tenha uma boa hora.

- Obrigada. Muito prazer. Meu nome é Nilcineia, mas me chamam de Nicinha. Não sei por que os marinheiros chamam as esposas de “dona Maria”.

- É pra vocês serem que nem a Virgem Santa, meu benzinho. – explicou Jesuíno.

O Tenente Paulo riu. Nunca pensara nessa explicação para o epônimo das mulheres casadas com os homens do mar. Depois conversou alguns minutos com o agora Sargento Jesuíno. Este, enquanto falava, deixava escorrer entre os dedos os cabelos crespos e ondulados do menino, baixinho, e agarrado às pernas do pai.

- Qual seu nome, garoto?

- Jesuíno Alves de Melo Filho.

- O que você vai ser quando crescer?

- Marinheiro, igual meu pai.

Tenente Paulo despediu-se, seguiu seu curso e pensou: “Tomara que Jesuíno e Nicinha sejam felizes para sempre!”

Fabio Daflon
Enviado por Fabio Daflon em 24/08/2016
Reeditado em 25/11/2021
Código do texto: T5738025
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