Amores pelágicos

A marca dos dedos ficou impressa em vermelho quando ela finalmente relaxou a pressão sobre o braço de Marcelle Jossart, que a fitava com uma expressão atônita, olhos úmidos.

- Por que fugiu de mim?

- Eu não estava fugindo de você, Carla. Segui em frente com a minha vida, você fez o mesmo com a sua...

Marcelle olhou aturdida para o braço marcado, e o esfregou, sem despregar os olhos da ex-companheira, do outro lado da mesa.

- Desculpe se te machuquei...

- Foi mais a surpresa. Não que você já não tenha sido... intensa antes, Carla. Mas nunca em público.

- Intensa é algo que me define. Meus sentimentos por você também, Marcelle. Desculpe, desculpe...

E acariciou o braço, onde a pele lentamente voltava à cor original.

- Só me diga como você, uma pesquisadora brilhante, virou professora de biologia no Athénée Royal em Bruxelas!

- Bem, você sabe... eu gosto de lecionar, o Athénée é uma escola prestigiosa... e queria ficar perto da minha família. Minha mãe... você se lembra dela.

- Sim, lembro. E também lembro que nunca foi com a minha cara.

- Mamãe não gosta de alemães, independentemente do gênero ou da orientação sexual, Carla.

- Não a culpo. Mas será que alguma vez ela entendeu as profundezas oceânicas do meu amor por você, Marcelle Jossart?

Jossart abriu um sorriso triste.

- Profundezas oceânicas... uau! Nos afundamos em águas insondáveis, nas quais corríamos o risco de não voltar.

- Eu não queria voltar. Você sempre foi a medrosa.

- Creio que sempre fui a realista, Carla. Não teríamos ido muito longe, mesmo com todo amor que sentíamos...

- Marcelle, seja franca: foi a questão política, mais do que outra coisa, que a fez terminar com o nosso relacionamento?

Jossart suspirou.

- A questão política é importante. Mas há um outro aspecto: você queria oficializar a nossa relação.

- Para demonstrar o quão importante você é para mim. As leis do Reich tornaram-se bastante flexíveis e abrangentes no que toca a uniões homoafetivas; tanto quanto, ouso dizer e que ninguém nos ouça, as da União Soviética. Não somos como aqueles bárbaros das Américas que condenam relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo com base na Bíblia!

- Sim, sim, eu sei disso tudo... mas não muda a situação lá em casa.

- A sua mãe é contra o casamento.

- Sim.

Carla Feigenspan correu de leve os dedos pelos cabelos castanhos de Marcelle Jossart, como se os penteasse.

- Acho que está na hora de você sair de baixo da saia da sua mãe, Marcelle.

A interlocutora balançou a cabeça, num gesto de concordância.

- Talvez tenha chegado a hora, Carla.

[27-09-2016]