Palavras Ao Vento

Quando algo dá errado, quando aquele novo ferro não funciona após dois dias da compra, não deveria dizer que está uma DROGA, uma M#*£@. Dizem que precisamos tomar muito cuidado  com as  palavras que soltamos ao vento. Prova disso é a minha amiga e vizinha Lourdes Maria.

Lourdes Maria e o Thomás se amavam muito apesar de brigarem que nem cão e gato. Lourdes é uma mulher totalmente independente. Se formou engenheira e trabalhava para uma multinacional em São Paulo. Com a vida sempre corrida, nunca pensou em ter filhos. Os sobrinhos por parte da família dela, assim como os do Thomás, lhe bastavam, sem contar os quatro afilhados. O Thomás é advogado sem muita aspiração. Tinha seu próprio escritório de advocacia, mas não ganhava lá grande coisa por que estava sempre  oferecendo pro bono. Assim, não rolava muito dinheiro e muitas vezes ele recorria ao cheque especial, que o deixava quase no vermelho todo mês.

Quantas vezes a Lourdes Maria não berrava, "Droga, Thomás! De novo com pro bono? Quando é que vai aprender que tem que cobrar pelo seu trabalho. Não tem como pagar as contas se você não cobrar! Puta que pariu! Logo, aquele Bono do U2 vai cobrar por cada pro bono que você usou para depois doar pra alguma ONG!"

Ultimamente, a engenheira andava muito mais irritada e decepcionada com o marido do que de costume e soltou essa frase ao vento: "Sabe Thomás, não preciso de você. Aliás, nunca precisei. Sempre fui dona do meu nariz e nunca lhe pedi nada, nada. Já  tô é  farta desse seu descaso com sua carreira e nossa situação financeira. Basta o cliente dar uma choradinha que vai logo dando pro bono.  A otária aqui tem que dá conta das despesas da casa quando você não comparece, não é mesmo? Você não precisa trazer grana pra casa. Você é 'O Cara'. Sempre o Thomás, o bacanérrimo, casado com a filha da puta daquela Lourdes Maria, a chata do caralho!"

A conversa, como sempre, virou aquela ladainha ensaiada da Lourdes Maria por isso o Thomás não abriu a boca nenhuma vez. O forte dele era defender os mais fracos, oprimidos, injustiçados e violentados. Não era do tipo  de se  gabar, nem  se quer  sonhava  com  fama  e  dinheiro. Thomás fez como sempre fazia, ficou na dele e deixou a mulher destilar toda sua raiva. Sua mãe sempre lhe  dizia, "Nada de  sufocar  a  raiva, meu  filho. Ódio e desgosto podem transformar numa doença, um câncer que vai acabar te matando". Por mais que a Lourdes Maria  lhe enchesse o saco por causa do jeito dele de ser, ele não queria vê-la sufocar no seu próprio veneno. Enquanto ela  soltava o seu bê à bá, Thomás fechou seus olhos e fez uma viagem ao passado não tão longe e procurou achar alguma recordação que o fizesse lembrar porque aquela mulher havia se apaixonado por ele. Difícil concentrar naquela doida  toda virada no alho mas em alguns minutinhos o Thomás se lembrou. Conseguiu achar um arquivo na sua memória que o levou para 1995, tempos bons de faculdade e os movimentos estudantis.  Aquela garota do curso de engenharia química invadiu o Grêmio Estudantil querendo saber seus direitos em relação à assédio sexual no trabalho. Thomas repassou todas as informações além de oferecer ajuda no que fosse preciso. Sem  dizer obrigado a futura engenheira lhe deu às costas e saiu pela porta. Exatamente duas semanas depois, ela voltou para agradecer o Thomas e lhe convidou para um jantar no Terraço Itália. Como não aceitar um convite desses! Naquele jantar Lourdes Maria lhe contou sobre a conversa com o diretor da empresa onde ela era estagiária e como ela iria não só processar a empresa mas também acabar com a reputação centenária da família dele. A história por completa ela nunca contou. Mostrava se orgulhosa com o poder que havia adquirido por causa daquele algo podre que ocorreu. Deveria ser muito sórdido por que a Lourdes nunca mais se preocupou com dinheiro. No fim do jantar, já um pouco intoxicada pelo champagne francês, Lourdes Maria sussurrou ao pé do ouvido do Thomás: "Sabe que você é muito gato?", e apagou.
Em algum momento entre aquele apagão e os próximos encontros, aquela garota se declarou apaixonada e ele, que nunca tinha se envolvido com ninguém, embarcou na paixão dela.
Do nada, Lourdes Maria dá um berro que faz o Thomás voltar para o agora rapidinho. O seu olhar parecia tão distante que Lourdes Maria resolve parar com o seu discurso sobre dinheiro, obrigações e decepções. O melhor remédio é ir para  cama. Aos poucos, os olhos do Thomás olham ao seu redor e acabam enxergando aquela triste realidade em preto e branco. Seu coração dilacerado lhe questiona: "Cadê aquele colorido Kahlo caliente, Thomás? Para onde foi parar aquela paixão toda?" A pergunta ecoa na sua cabeça sem parar até que cai lá mesmo no sofá, mas só depois de algum tempo  ele consegue fechar seus olhos e dormir.

Na manhã seguinte, Lourdes Maria acordou sozinha mas nem deu bola. Foi logo espreguiçando o seu corpo, levantou da cama e foi direto à cozinha passando pela sala, mas  não havia  nenhum sinal do Thomás. Com certeza madrugou para ir bancar o bom samaritano em alguma favela lá na Zona Sul. Para que dar importância ao Thomás? Ela sabia que no fim, nem em pizza acabaria pela falta de grana na conta bancária  do  marido.

Aquela quarta feira foi realmente um dia de cão para Lourdes Maria. Problemas com a qualidade da matéria prima entregue no dia anterior tomou maior parte do seu tempo naquela manhã interminável. Teve que pedir delivery e almoçar no seu escritório sozinha como quase  sempre  faz. Estranho era não receber nenhuma chamada ou mensgem do Thomás. Ele sempre ligava para dar um oi e perguntar sobre o dia dela, mesmo quando brigavam. O tempo custou a passar, mas finalmente o dia chegou ao fim e Lourdes Maria foi para casa.

O transito estava fluindo e o caminho para casa  nem pareceu tão longo como nos outros dias. Se jogar numa banheira de espuma e ficar de molho até que aquele peso e estresse sumisse era tudo que o corpo dela pedia. Mais uma vez, algo estranho no ar. Nenhum sinal do Thomás. Já na banheira, Lourdes Maria  dá uma olhada no seu celular  e verifica se tem alguma mensagem de texto ou voz do Thomás. À primeira vista, nada. Com certeza, o cansaço dos seus olhos deixou alguma mensagem passar despercebida, mas não, ela  dá  mais uma olhada e  nenhum  registro  de mensagem. Aquele banho  quente, os sais  e velas aromatizadas  estavam  fazendo efeito e em poucos minutos o celular que segurava caiu  ao chão, sinal de que a Lourdes Maria se entregou ao  cansaço.

Já era madrugada quando Lourdes Maria resolveu ligar para seu marido. Uma, duas ... três tentativas e nada.

Na manhã seguinte, Lourdes Maria deu de cara com o Thomás sentado na poltrona da sala.
- Bom dia, Lou.
Lourdes Maria não estava conseguindo entender aquela tranquilidade toda do Thomás.
- Que bom dia que nada Thomás! Você some o dia inteirinho e vem com, 'Bom dia, Lou'?
- Não sumi. Estava no escritório. Precisava ficar só, apenas.
- É mesmo? Eu também tô precisando de um tempo só para mim, sabia?
- Náo. Não sabia. Você me parece tão dona de se, tão eficiente.
- Tá, tá, tá Thomás. Chega de conversinha fiada.
- É isso mesmo, Lou. Chega de conversa, ladainha, brigas ...
E do nada, as mãos do Thomás colocam uma pasta preta de couro na mesinha de centro.
- Pensei muito, Lou. Pensei com amor e carinho sobre nós e ... tá tudo na pasta, aqui. São papeis para nossa separação.
- Como assim, Thomás? Não tô entendendo.
- Ponderei muito sobre o meu papel nesse casamento e levei muitas coisas em consideração, mais do que você possa imaginar. Você não precisa de mim, nem nunca precisou. Cheguei à conclusão que sou um peso para você. Tenho que te libertar desse fardo que não te traz nenhum benefício. Percebi que ultimamente, nossa vida conjugal perdeu todo aquele colorido e graça. Tudo ficou preto e branco,  chato, sem amor. O melhor é separarmos.
Lourdes Maria sentiu uma fraqueza repentina e procurou se sentar no sofá antes de capotar e apagar.

Ao abrir seus olhos, percebeu que estava deitado no sofá, o mesmo onde o Thomás estava sentado. Mas, cadê o Thomás? Nenhum sinal dele. Apenas aquela pasta cheia de papéis que ela atira pela janela do décimo nono andar e aquele vazio terrível  que começa a consumí-la sem dó. 
Calada Eu
Enviado por Calada Eu em 04/01/2017
Reeditado em 04/01/2017
Código do texto: T5871410
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