CORAÇÃO VAZANTE (DO LIVRO "MANHÃS DE INVERNO")

Porque ele a havia deixado. Juntava os pedacinhos do coração mal remendados e fazia seu trabalho diário de servir as mesas do hotel em Mongaguá. Dalva era de lá, nascida lá, e lá permaneceria por muito tempo, pelo tempo de sua vida de juventude abundante, nas formas fartas de seu corpo mulato e nos cabelos crespos que fazia questão de não alisar, mas apenas pôr em tranças grossas que lhe caíam pelos ombros. Mantinha seu sorriso cortês ao atender a clientela por mais que estivesse sentindo-se terrivelmente magoada. O sorriso fazia parte de um jogo, de um comércio necessário para manter o emprego, pois dele precisava para pagar as contas de água, o aluguel da casa, seus vestidos floridos de festa e suas calças de linho, sempre asseadas e passadíssimas para melhor se apresentar aos turistas, muitos deles estrangeiros como Leonhardt.

Nunca conseguira pronunciar direito seu nome, por isso, ele que tinha conhecimento de língua portuguesa, lhe dera a tradução, que foi logo aceita por ela: Leonardo, ou mesmo Léo, “Coração de Leão”, como ficou conhecido depois, e como, secretamente, carinhosamente, chamava-o no tempo em que ficaram juntos, ou melhor, no tempo em que ele ficou no Brasil, após aquele carnaval embriagante e alegre.

Deste modo pensava nele, enquanto anotava os pedidos de cada mesa do bar, o qual era muito grande e afamado na orla, prolongando-se num deque para fora da construção e recebendo a brisa fresca que soprava do mar. Deste modo, pensando nele enquanto escondia umas lágrimas e os lábios retorcidos num muxoxo, disfarçados pelo sorriso forçado que mantinha a muito custo, enquanto conversava com um cliente ou outro, levava os drinks e os pratos --- deste modo cismava, enquanto tentava memorizar o que deveria servir em cada mesa do estabelecimento.

Seu Antônio fiscalizava-a de longe. Este senhor para ela era mais do que um patrão, era um leal e confidente amigo. Chegou a perguntar-lhe se havia acontecido alguma coisa anormal, sobre como ela se sentia. Ao que ela respondia-lhe: “Era aquilo, ainda, a saudade, a partida...” Ao que Seu Antônio lhe dizia, com seu sotaque piracicabano: “Mas olha, isso ainda, menina, já se passaram tantos meses, já são outros carnavais!”

Na verdade Dalva trancara esse sentimento com medo de que este doesse ainda mais. Mas continuava a doer, não podia fugir, teria de sair dali, dos olhares das pessoas estranhas, e andar, andar muito, meditabunda, sozinha pela praia --- e chorar, chorar por tudo aquilo o que não havia chorado no decorrer daquele ano, do contrário aquilo poderia se transformar em doença braba!

É que ela acreditara mesmo que Leonhardt iria ficar. Tanto ele prometera, disse que dela gostava muito, muito, que era linda, cheirosa, o afeto que lhe faltava; com um bafo de caipirinha que ele gostava de bebericar e que era novidade para estrangeiro louro, num sotaque gutural dos erres que a seduzia, lhe dizia e ela jurara acreditar: “Eu não vai voltarr, Dalva, eu vai ficarr aqui no Brrasil...”

Como fora tola em acreditar no que aquele gringo sem tipo havia dito! Disse-lhe ainda que se casariam, que morariam numa casa linda, chiquérrima, ali mesmo, num condomínio grã-fino à beira mar... Que teriam filhos, que lhe daria uma “vida” melhor. Agora ele estava com a outra na Alemanha, sua esposa, também brasileira. Agora a consciência, adormecida há tantos meses, lhe vinha numa explosiva revolta. Punha os copos de vidro com força nas bandejas, lustrava as taças quase a ponto de estilhaçá-las com as mãos. Num susto as lágrimas represadas, quentes, molhavam sua face morena e muito lisa --- e, num susto, alguns homens na mesa ao lado se riam da expressão da moça.

Mas ela não se importava com mais nada!, já não poderia se esconder, os soluços vinham violentos, cada gemido que dava era uma farpa daquela estaca com que Leonhardt havia golpeado seu coração. Crispou as mãos no avental molhado e tirou-o com força. Olhe só, as amigas de trabalho também olhavam-na espantadas, não entendendo o que estava acontecendo. Apenas Seu Antônio foi para seu lado conversar afetuosamente, ele que para ela era como um pai condoído e o qual respeitava muitíssimo.

Mas não havia, por maior que fosse a boa intenção, ninguém a quem dar de uma vez por todas aquela dor que só ela mesma poderia curar. “Pode ir, minha filha, vá se banhar no mar que te fará bem”, o velho, entendendo, num acordo tácito, lhe falou. Então, saiu sôfrega do bar, aquele cheiro de peixe frito a enojava! Lembrou-se de que o avô paterno dizia em casa a mesma coisa de doença de amor, que banho de mar fazia bem.

A lembrança apagou-se de sua mente rápida como um relâmpago! Aliás, estranhamente, àquela hora da noite, por mais que viesse um vento suave do mar, umas nuvens muito escuras se armavam no céu e somente uma estrelinha ou outra se divisava. Dalva não queria falar com mais ninguém! Resoluta, cambaleando, segurando o xale de seda esvoaçante que pusera para não constipar, fincava fundo os pés descalços na areia. Os cabelos agora soltos se avolumavam fortes, à eletricidade das ondas, dos raios que cortavam o céu, a juba da leoa desonrada e ferida, furiosa, ah, Léo, “Coração de Leão”!

Após caminhar muito, pelo tempo que pareceu-lhe uma infinidade, já tendo chegado na outra extremidade da orla, divisada por um alto monte de rochas, arrancou de si o xale que se foi ligeiramente pela areia. A praia imensa estava muito escura e só mesmo a luz dos intermitentes relâmpagos clareavam as espumosas ondas que Dalva via crescerem e arrebentarem a seus pés.

Então, vencida, convulsa, horrivelmente apaixonada por Leonardo, deixou-se cair no raso do mar. E mergulhou, mergulhou vencendo o fluxo bravio, misturando o sal na língua de suas lágrimas ao sal infindo daquelas águas. A dor dela, diluída pelo mar tão maior, sarava aos poucos, e ela mergulhava ainda mais e emergia cada vez mais ao fundo, rugindo, bramando agudo sua dor que poderia ser ouvida ao longe na praia.

Mas a praia àquela hora estava vazia. E ela ali ficaria depois de muito tempo nem contado, flutuando, pairando aliviada, compadecida de si, até que toda aquela dor e aquele veneno que lhe matariam, se não tivesse sido um pouco mais ágil, se estancasse um pouco.