A CARTA

Numa pequena gaveta dissimulada na sua velha escrivaninha, Tim descobriu uma carta cujo envelope já evidenciava bastante tempo de existência. Curioso, abriu-a cuidadosamente.

Começou a leitura e rapidamente se lembrou... tinha-a escrito há anos para a sua vizinha e colega de escola Ilka, mas a missiva nunca saíra das suas mãos.

« Querida Ilka.

Finalmente tomei coragem e escrevi para relatar o que vai no meu coração... Não me lembro de quando te comecei a amar, talvez até te tenha amado mesmo antes de te ter conhecido... aquilo que inicialmente era amizade, companheirismo, transformou-se em amor. Agora sei que é isso mesmo... Afastados, a saudade abriu-me os olhos... Os mesmos que te adoravam sempre que estava junto a ti... Quando estávamos em Estudo Acompanhado, que bem me sentia ao teu lado! Quando ocasionalmente as nossas mãos se tocavam, só depois compreendi a razão do meu embaraço...

Tu escrevias poesia, mostravas-me aqueles teus versos sonhadores e eu, bruto e insensível, apenas acenava com a cabeça em sinal de ignorante aprovação.

Ah, Ilka, minha doce flor, quanto te amei e amo...apaixonadamente...

Possivelmente nunca lerás esta carta, não tenho coragem para ta enviar e mesmo que quisesse também desconheço o teu paradeiro, mas se algum dia pensares em mim, talvez percebas que todo aquele enlevo era resultante de um amor puro, de adolescente, que para sempre ficou letárgico no acaso do destino.

Ficarei para sempre com a tua imagem no coração.

Eternamente teu, Tim »

Tomado por uma forte nostalgia que lhe alagou os olhos, lembrou a beleza e encanto da colega, e aquilo que sofrera após o seu afastamento, bem como a mágoa de não mais lhe poder falar, ter a sua agradável companhia.

Durante muitos meses andara meio perdido no mundo, reprovou nesse ano letivo. Só depois de se ter capacitado que por amor estava a destruir o seu futuro, a sua vida, ganhou ânimo e determinação. A partir daí, tudo, até concluir o curso de engenharia, foi levado em frente, sem hesitações e agora que era engenheiro há uns anos, alcançara o sucesso profissional e tinha uma vida economicamente confortável. Mas faltava-lhe algo... Mulheres, tivera-as, ligações com mais ou menos intensidade, mas que acabavam sempre por redundar em rotinas e enfado...Só depois de ler a carta compreendera a razão daquela insatisfação, daquela tristeza... Depois de Ilka, o amor, a essência da vida, não mais estivera presente na sua vivência... É bem verdade que o primeiro amor deixa quase sempre uma forte marca, que nunca se apaga...

Levantou-se da cadeira e voltou a guardar cuidadosamente a carta naquela pequena gaveta, fechando de seguida a escrivaninha. Depois foi até à janela, contemplando o reduzido trânsito de domingo e assim ficou, alheio a tudo, olhando sem nada ver...

Carlos Guerra Nunes
Enviado por Carlos Guerra Nunes em 19/11/2017
Reeditado em 19/11/2017
Código do texto: T6175976
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