Conto das terças-feiras - A nova ordem

Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza (CE), 3 de outubro de 2017

Jefferson e Carla esperavam, pacientemente, pelo avião que os levaria ao Centro de Pesquisas e Produção Agrícolas da Amazônia - CPPAA, criado pelo Dr. Greg Allinson, seu diretor, detentor de grande fortuna herdada de seu pai, especulador financeiro em Berlim e morto, recentemente, por organização fundamentalista religiosa com práticas terroristas na África.

Os dois são pesquisadores nas áreas de genética vegetal e produção de sementes, respectivamente. Foram convidados pelo Dr. Allinson para realizar pesquisas em suas especialidades para o CPPAA. O casal recebera o convite pelos excelentes trabalhos publicados em revistas científicas mundiais, cujos resultados vêm revolucionando a agricultura de subsistência e produção de alimentos na África.

O CPPAA encontra-se localizado no centro da Região Amazônica brasileira, em lugar de difícil acesso, para impedir que curiosos e espiões a ele cheguem. Só convidados do Dr. Allinson podem participar de sua equipe de trabalho, escolhidos entre os melhores cientistas do mundo na área de produção de alimentos. Nem mesmo os ribeirinhos, população residente às margens dos rios amazônicos, têm conhecimento desse projeto, exceto aqueles que são recrutados para fazerem os serviços meios. O acesso ao CPPAA se dá a partir de Manaus, em navio do Centro, pelos extensos rios que formam a bacia hidrográfica da Amazônia, e depois em dois pequenos barcos que navegam pelos seus igarapés. Os pilotos desses barcos são funcionários da mais estrita confiança do Dr. Allinson, residentes na área do Projeto e só saem para apanhar os convidados do Dr. Allison. No percurso são monitorados atentamente.

Embora sabedores da localização do novo trabalho, o casal de pesquisadores não tinha a mínima noção do que viria pela frente. Os primeiros contatos com o responsável pelo Centro foram via internet, quando ficaram sabendo da excelente estrutura de pesquisa que seria colocada à sua disposição. O salário prometido mais que pesou na decisão. Eles viajaram de São Paulo para Manaus em manhã bastante chuvosa, mas estavam satisfeitos pela oportunidade de trabalhar em um projeto que lhes traria reconhecimento internacional e mostrariam ao planeta novas oportunidades de acabar com a fome mundial, utilizando poucos recursos. Embora tenham publicado alguns resultados sobre suas pesquisas, a continuidade delas traria avanços consideráveis na produção de alimentos de maneira sustentável. Era essa a expectativa que embalava o sonho do casal de cientistas.

Ao desembarcarem em Manaus já havia um helicóptero à espera para levá-los a um porto construído às margens do Rio Negro, de propriedade do Centro, onde estaria o navio de sugestivo nome, “Leben retten” - salvando vidas – também de propriedade do CPPAA, que os levaria ao ponto navegável mais próximo do ancoradouro onde aguardavam as canoas, o último meio de transporte até às estruturas físicas do projeto. Seriam trinta e duas horas de viagem.

No navio só a tripulação, constituída de quinze pessoas, entre elas o comandante, o copiloto, os três imediatos e dez marinheiros responsáveis pelos serviços na casa de máquinas, da cozinha, limpeza e abastecimento. Na cidade de Manaus o navio era abastecido com mercadorias necessárias ao pleno andamento das atividades do Centro. Nada poderia faltar, a logística tinha que ser planejada e executada com perfeição, poucas viagens eram realizadas anualmente.

Já acomodados, o navio zarpou do porto de Manaus exatamente à hora prevista, vinte e três horas do dia 3 de abril. Ao barco chegariam às sete horas do dia 5. De lá até a sede do projeto seriam mais duas horas, em pequena canoa.

─ Jefferson, você notou que ninguém falou conosco até agora, nem mesmo o comandante do navio? Perguntou Carla, intrigada.

─ É verdade, - respondeu Jefferson, sem dar muita importância à pergunta de Carla.

─ Isso não é estranho? Insistiu a esposa. Não somos passageiros comuns, fomos contratados pelo Dr. Allinson, merecemos atenção e respeito.

─ A tripulação não tem relação nenhuma com o nosso trabalho aqui. Deixe-a trabalhar à maneira que lhe convier, preocupemo-nos com as nossas coisas. Vamos dormir que já é tarde e a viagem será árdua, falou rispidamente o marido.

O casal tinha divergência comportamental, ele, sisudo, cara de poucos amigos, metódico, alcoólatra; ela, meiga, alegre e descontraída, amiga, inteligente, beleza comum. Conheceram-se quando Carla fazia o doutorado, ele, seu professor de uma das disciplinas que ela cursara. Diferença de idade entre eles: dez anos. Tudo isso não os impediu de chegarem, no ano da maior mudança de suas vidas, aos trinta anos de um casamento sem muitos contratempos.

O percurso da viagem transcorreu sem incidentes, apenas o enjoo de Carla durante as duas últimas horas do traslado de barco à terra firme.

A recepção em terra foi bastante fria. O Dr. Allinson deu as boas vinda ao casal, secamente, e os indicou à entrada do edifício principal, construção bastante moderna e arrojada, lembrando uma pirâmide invertida, com o seu vértice-base não pontiagudo, muito mais estreito que a parte superior. Uma grande porta de aço se abria para o seu interior com acesso a um grande corredor. De cada lado percebiam-se estreitas portas, todas numeradas, que foram apresentadas ao casal como sendo os aposentos do pessoal de apoio. No centro do corredor dez pequenos elevadores de cada lado com acesso aos andares superiores. Cada elevador servia apenas a um pavimento, que divididos, sem comunicação entre si, contém dois grandes laboratórios e dois pequenos apartamentos. Cada laboratório, dotado do que há de mais moderno em pesquisa para cada especialidade, usado por um pesquisador e três auxiliares, com conhecimento acadêmico em nível de mestrado na especialidade do pesquisador responsável. Somente estes três auxiliares tomam conhecimento do que ali está sendo feito. O Dr. Allinson, por meio dos relatórios recebidos semanalmente, acompanha o desenvolvimento dos trabalhos e o seu sucesso.

O pesquisador é contratado para resolver problemas levantados em várias partes do planeta, sobre sua área de especialidade. Geralmente são contratados por três a cinco anos, quando então são dispensados de suas funções, mesmo que não tenham levado a termo a solução de seu problema. Todas estas explicações foram passadas ao casal, pelo Dr. Allinson, sem que nenhuma pergunta lhes fosse permitida.

O apartamento colocado à disposição do casal era pequeno, mas bastante confortável. Pequena cozinha americana, para refeições rápidas, fogão, geladeira. No quarto uma cama de casal e anexo, um escritório, com duas mesas para trabalho, cada uma com um computador, sem internet, um aparelho de TV ligado em circuito interno, onde se pode assistir filmes e outros entretenimentos, devidamente selecionados. Uma biblioteca com obras da especialidade do ocupante, livros como romances e sobre amenidades.

Os pesquisadores recebem, semanalmente, livros, revistas e jornais, também selecionados pelo Diretor do Centro. Artigos científicos de periódicos internacionais são destacados e repassados aos respectivos profissionais. O Dr. Allinson pesquisa, na internet, os assuntos científicos, faz release e repassa aos pesquisadores de cada área. Tudo é feito para que ele tenha total controle sobre o que se lê no Centro.

Há grandes estufas e casas de vegetação nas áreas que são colocadas à disposição dos pesquisadores, caso precisem desse suporte de pesquisa. Elas são dotadas de controle de temperatura, umidade, incidência de luz, etc.

Na manhã do dia seguinte, depois de visitar as instalações de seus laboratórios, Carla e Jefferson procuraram ter contato com os outros pesquisadores, sem sucesso. Procuraram falar com o Dr. Allinson, o que também não foi possível. Um de seus auxiliares informou que esse contato só se daria a cada quinze dias. Contatos mais imediatos poderiam acontecer via intranet.

─ Tudo isso é muito estranho, comentou Carla.

─ Temos que manter a calma, não devemos nos precipitar. Quem sabe isso só vai acontecer durante os primeiros dias de nossa estada aqui, disse Jefferson, tentando tranquilizar a esposa.

─ Não será nada produtivo trabalhar assim, sem liberdade individual, sem termos com quem conversar, trocar ideias - falou a esposa do geneticista.

Sem se alterar, Jefferson deixou o quarto e foi para o seu laboratório de trabalho. Não queria pensar mais sobre a situação encontrada. Estava ali para trabalhar e era isso que iria fazer. Quanto mais rápido concluísse a tarefa para a qual fora contratado, mais cedo voltaria para São Paulo.

Do laboratório pode-se ver a área que cerca o prédio principal. Grande área verde, constituída por árvores nativas e vasto campo de produção de sementes. Dois prédios menores, sobre os quais nada lhe fora revelado, fato que aumentou a sua curiosidade. Como não havia ninguém para perguntar, resolveu esquecer. Toda a área do Centro é protegida por cerca elétrica e vigiada por câmeras de TV para evitar intrometidos.

Os primeiros dias foram de adaptação e leituras do material selecionado pelo Dr. Allinson, que vinha sempre acompanhado de orientações de como proceder durante o desenvolvimento de suas pesquisas. O que cabia ao casal executar fazia parte de um macroprojeto, envolvendo várias áreas do conhecimento como fisiologia e genética vegetal, solo e nutrição de plantas, entomologia, fitopatologia, tecnologia pós-colheita, economia agrícola, política internacional e sociologia. Todas elas com o único objetivo de acabar com a fome no mundo.

─ Projeto de elevada magnitude ─ falou Jefferson para a esposa, que também se encontrava absorta com suas leituras.

Ela levanta a cabeça, olha para o marido e pergunta:

─ Será mesmo? Será que não há nada por trás de tudo isso?

Ele, intrigado com a pergunta da esposa, aumentou a voz e falou:

─ Em tudo você vê conspiração. É descrédito na humanidade?

─ Não é isso, mas tudo aqui é estranho. Somos quase prisioneiros, tudo o que devemos fazer já vem determinado, mas nada nos dá em troca, a não ser o seu rico dinheirinho.

─ É o jeito alemão de trabalhar, ele quer produtividade ─ acrescentou o marido, querendo encerrar aquela conversa.

Ela insiste:

─ Devemos ficar mais atento às coisas que nos rodeiam. Será que não há nada mesmo para desconfiarmos? Por que não podemos manter contato com os outros pesquisadores? Por que só podemos falar com as mesmas pessoas de sempre, os nossos três colegas colaboradores, os auxiliares de laboratório e o pessoal que serve as nossas refeições e os que fazem a limpeza do apartamento?

─ Para tudo isso ele deve ter um propósito e não revela para não nos distrair de nossas atividades. Se é para trabalhar na pesquisa para a qual fomos contratados, vamos fazer isso, certo? ─ Perguntou Jefferson, rispidamente.

A esposa se calou e voltou às suas leituras. Em seus pensamentos ela relembrava do tempo que era livre para desenvolver o seu trabalho. Muitas perguntas estavam sem respostas. E eles não obtiveram nunca.

Misteriosamente nada mais se ouviu falar sobre os dois cientistas que deixaram a cidade de São Paulo para irem trabalhar na impenetrável e selvagem floresta amazônica.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 03/10/2017
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