PRESENTE DE NATAL

Era uma noite chuvosa e fria e o vento uivava lá fora açoitando os altos muros e insinuando-se furioso pelas ameias e seteiras do velho castelo.

Sozinha, na antiga e atarracada casa de pedra encostada á face exterior da muralha voltada a norte, onde continuava a viver, a filha do falecido caseiro, estremecia de medo.

Esperava ansiosamente a chegada do filho que tinha saído em viagem, para vender aos ricos castelões a norte, alguns dos arcos por si fabricados.

Eram arcos robustos, fabricados com a madeira dos teixos centenários que rodeavam o castelo e que constava terem sido plantados pelo seu fundador.

Ela não acreditava nisso contudo, pois que o castelo devia ter milhares de anos e mesmo sendo as árvores centenárias, como podia tal história ser verdadeira? Lendas e ditos de gente antiga sem dúvida.

Enquanto espevitava a pequena chama alimentada a azeite, na candeia de ferro que tinha colocado na beira larga e alta da janela estreita do seu casebre, para assinalar ao filho o caminho do lar, ia recordando.

Como tinham sido alegres outros Natais passados na companhia do falecido esposo quando o seu filho era um menino que gostava de trepar aos teixos e de se esconder nas altas ramadas para ela o procurar desesperada e aflita, pensando que tinha sido raptado pelos caminhantes da noite.

Agora que o menino estava um homem feito, temia o dia em que ele voltasse com uma esposa das suas muitas viagens, alguma filha de um rico castelão que lhe roubaria o seu rapaz e a deixaria sozinha.

No entanto era assim a vida! – Pensava ela conformada com o seu destino, enquanto olhava a mesa posta com as parcas iguarias de que dispunha ali naquele fim do mundo.

A velha mãe, pretendia agradar assim ao seu filho e festejarem mais um Natal, quem sabe se não o último, juntos.

Ela tinha assado no forno alimentado a lenha, um peru que tinha criado com zelo durante todo o ano, alimentando-o com o milho cultivado por ela própria lá em baixo no brejo junto ao ribeiro, especialmente para aquela noite.

Tinha também, assado batatas-doces e confeccionado um bolo com farinha de milho, mel, passas e nozes, já que as abelhas lhe tinham feito a oferta daquele perfumado mel, com odores de urzes e rosmaninho.

As passas, era ela mesma que secava ao sol, depois de no fim do verão fazer a colheita das uvas selvagens que cresciam junto ás nogueiras do outro lado do rio.

Na panela colocada junto ao fogo no chão da velha cozinha, coziam ainda os grelos tenros das couves e o pão acabado de cozer, perfumava o ambiente com o seu odor.

Cuidadosamente foi á cave buscar uma garrafa do vinho que o seu marido fazia e de que tinha ainda algumas cuidadosamente guardadas para as ocasiões solenes como o Natal.

Com extremo cuidado, abriu-a e colocou-a perto do fogo para amornar um pouco.

Então sem mais nada para fazer de momento, sentou-se no banco de madeira e esperou quieta e calada, até que o vento num súbito uivo mais forte a despertou da sonolência em que havia caído.

Mas os ruídos que a tinha despertado, não eram só devidos ao vento, pois que um tropel de cascos se aproximava na noite tempestuosa.

Conhecendo o relinchar fatigado do cavalo, companheiro de viagens do seu filho, aproximou-se da porta para a abrir e deixá-lo entrar pois que devia vir molhado e cansado.

No entanto, surpreendida verificou que o seu filho transportava sentada junto ao seu corpo e aconchegada na larga capa, uma criança pequena, um menino de pele clara, cabelos castanhos, sedosos e compridos, que colocou cuidadosamente no chão.

Olhando sua mãe com carinho, pediu-lhe para cuidar da linda criança que parecia exausta, enquanto ia secar e alimentar o seu cavalo, o que ela fez pegando-lhe ao colo e levando-o para dentro da cozinha aquecida.

Olhando-o com atenção verificou que era parecido com o seu filho em menino, pois tinha os mesmos olhos azuis da cor do céu, o mesmo cabelo comprido, de cor das avelãs, a mesma face de oval perfeito, em feitio de coração e ficou quieta extasiada e pensativa.

Assim a encontrou o seu filho, quando voltou, sentada no banco de madeira, junto ao fogo e olhando para a criança que se tinha deixado adormecer no seu regaço, aconchegada e sorriu com ternura perante tal quadro.

A anciã, olhou o seu filho, com uma interrogação no olhar, e o seu filho percebendo-a em silêncio, acenou afirmativamente atarefado em despojar-se da sua capa completamente encharcada pela chuva forte

Sentando-se junto a sua mãe, começou a falar baixinho:

- Minha mãe, numa das minhas viagens, enamorei-me perdidamente da filha de D. Vasco Ramires, do Castelo da Serra Alta, sabe minha mãe? Aquele mais ao norte, junto á fronteira do condado…

- Sei sim, meu filho, mas esse Senhor Conde tem fama de violento, segundo o que o teu pai me contava, e os outros nobres, não gostavam de frequentar o seu castelo.

- Sim minha mãe e tinham razão para assim proceder, pois que se trata de um homem cruel, mau e vingativo, que apenas faz o que as suas ruins paixões determinam.

Assustada a velha mulher, olhou o seu filho com atenção e viu duas lágrimas teimosas, querendo escorrer dos seus olhos, que estavam da cor da tempestade, cinzentos, baços e molhados.

- Que foi que ele te fez meu filho? – Perguntou temerosa…

- Mandou os seus guardas expulsaram-me do castelo, porque não tinha provas na altura que eu fosse o apaixonado da sua filha, e a sua esposa, única a quem dá ouvidos, lhe suplicou que não fizesse mal ao filho de João Lourenço.

Maria Clara ao ouvir o nome do seu marido, ficou subitamente mais séria e atenta ao desenrolar do relato do seu filho, a quem pediu que lhe contasse tudo e nada escondesse.

Então ouvindo José Manuel, o filho adorado com atenção, foi entendendo o desenrolar daquela história de amor.

- Minha mãe, sempre que eu ia para o norte, visitava Doroteia, a minha noiva, pois que os dois junto ao Cristo da Igreja do Alto da Serra, prometemos não ser de mais ninguém, e apenas um ao outro pertencermos.

E continuou: - Minha noiva tinha uma pequena casinha na serra, escondida entre arvoredos, que era de sua madrinha, e aí me esperava sempre que eu lhe enviava mensagem de que ia a caminho.

José Manuel estava comovido e chorava agora sem se conter – O culpado fui eu minha mãe, que não consegui controlar o meu amor e paixão de homem, e na última vez que fui ao Alto da Serra, Doroteia, estava diferente, parecia doente e cansada.

Perguntei-lhe o que tinha e ela não me quis dizer. Acabei por levá-la ao castelo, e foi aí que seu pai furioso, mandou que me expulsassem depois de eu dizer que tinha encontrado a menina perdida na serra, e que a tinha conduzido a casa.

Sua mãe ia percebendo tudo e já sem surpresa, ouviu o resto do relato, embora o seu fim não fosse ainda pressentido.

- Continua meu filho…disse Maria Clara quase a medo.

- Então desde aí, Doroteia nunca mais atendeu ás minhas mensagens, a casinha estava sempre fechada, e nesta viagem, já sem suportar mais, dirigi-me ao castelo, disposto a enfrentar a ira de D. Vasco Ramires, e não voltar sem a minha esposa adorada.

- Embora não me deixassem entrar, os guardas pareciam no entanto estar do meu lado e disseram-me para esperar na Igreja do Alto da Serra.

- Assim fiz e daí a algumas horas, chegou a mãe de Doroteia com o meu menino pela mão, e em silêncio entregou-mo, chorando.

- Quis saber de Doroteia e quem era aquela criança, embora o coração me desse a resposta, mas D. Maria das Dores, apenas me disse:

- És o filho de João Lourenço e em atenção ao amor que tive por teu pai, na minha juventude, embora ele nunca o soubesse, te peço que tomes conta deste menino. – Ele é filho da minha Doroteia e do seu noivo, que peço me digas com total sinceridade se és tu, meu jovem.

- Eu disse que era sim, mas que não iria embora sem Doroteia, a minha esposa que tinha desposado aos pés daquele altar, naquele lugar onde estávamos.

Chorando D. Maria das Dores, apenas me disse:

- Vai-te embora meu filho, toma o meu neto e sejam felizes os dois, pois Doroteia está lá no alto junto a Cristo que vos uniu, esperando por vós na Eternidade.

Com o coração despedaçado, apenas quis saber como tinha acontecido tal tragédia, pensando ter sido seu pai, mas a mãe da minha amada, disse-me que ela tinha falecido ao dar á luz, cansada e saudosa de mim, com medo de seu pai me matar se eu voltasse.

Abraçados mãe e filho, choravam agora, molhando o rostinho do anjo que dormia indiferente a tudo, mas temendo que ele acordasse, sua avó foi deitá-lo na cama de seu pai, que doravante seria também a sua, onde ele continuou a dormir, apenas ajeitando-se ao novo leito.

Então mãe e filho abraçados, voltaram para a sua ceia de Natal e em silêncio, comeram as iguarias que os esperavam ainda quentes junto ao fogo, dando graças por estarem juntos e em paz.

E o presente de Maria Clara, um netinho lindo, um anjinho louro, sonhava feliz naquela noite de Natal chuvosa e fria.

In "Antologia de Natal da U.L.L.A."

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Desejo a todos os amigos um Santo Natal e um Bom Ano de 2010.

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Comunico a todos que esta noite partiu para se juntar ao coro de anjos celestial, o Cavaleiro Mago, Roberto Oliveira, meu amigo, incentivador e divulgador e de tantos outros poetas e escritores. Quem me ler, por favor, reze uma oração por ele e sua família, nestas horas de luto e dor.