O AMOR EM DUAS DIMENSÕES

Isso é apenas uma narração, sem profundidade, uma seqüência de fatos encadeados por “entões”, “aliases”, “por issos” etc. Nada há de referências a deusas, acontecimentos políticos, passagens bíblicas, datas cabalísticas ou teorias psicológicas, são apenas fatos, com um pouco de lirismo, é verdade, afinal é a história de um casal novo, então fatalmente haverá algo de bonito, mas não é intencional, quando acontecer é porque o autor é também o protagonista, embora seja tudo em terceira pessoa, porque o autor pensa que isso aqui não é um diário, mesmo sabendo que todos os autores acabam falando de si próprios.

A história.

Era sábado à noite. Clima ameno, roupa nova, amigos à mesa, cada um com sua dose de vodca em meio ao gelo e a uma rodela de limão. Bar lotado, as pessoas na expectativa comum de um sábado à noite, mas, para ele – que é o autor, ratifico, mas vamos chamá-lo de “ele” apenas, pois o autor é tímido – para ele, estava tudo completo, amigos em volta, bebida, cigarro de cravo, ou era menta, não lembro, digo, ele não lembra, e os ingressos do show à mão.

Conta paga, e todos foram ao local onde o show se realizaria. Quatro bandas cover dos Beatles, embora ele já soubesse que elas tocariam músicas próprias e só algumas dos ingleses, dando uma nova roupagem a elas. Como de costume, em frente ao bar onde ocorreria a apresentação das bandas, havia as conhecidas carrocinhas apinhadas de cervejas que custavam relativamente mais barato do que dentro do bar. A teoria geral é que se tome o suficiente fora, para apenas manter o nível alcoólico necessário dentro do bar, evitando, assim, que se gaste muito dinheiro.

Estava tudo perfeito para ele, a bebida e os amigos o completavam, mas, ao olhar em volta, pensou:

— Ela vai estragar minha noite.

Branquinha, cabelos longos, vestido verde. Entrou no bar acompanhada de duas amigas. Dez ou 15 minutos depois, entraram ele e os amigos. Tocava “Let it be” neste momento. E a frase anterior não tem profundidade também, é só a descrição limpa e seca do que aconteceu, não carece de maiores reflexões, a não ser que você, leitor, queira.

(Reflexão).

Ele comprou uma cerveja da garrafa verde, acendeu um cigarro, conversou com os amigos e, quando a banda começou a tocar outras músicas que não dos Beatles, preferiu disfarçar para os amigos que já sabia que isso aconteceria. Em determinado momento, comentou com eles sobre a garota e recebeu aquele apoio típico de amigos em festas. Mas ele não tinha habilidade, tinha que contar com a sorte, com o humor da garota, com as forças que regem o universo, ou seja, não seria nada fácil convencê-la de que ele era interessante. Talvez a camiseta do Cães de aluguel (a camiseta do autor faz referência a outro filme, mas ele prefere não ser tão explícito) que ele estava usando ajudasse, mas os próximos minutos dependeriam exclusivamente do que ele dissesse, então, apagou o cigarro, pôs-se ao lado da garota e não conseguiu pensar no que dizer, simplesmente disse o que lhe veio traquéia acima:

— Você tem as sandálias mais lindas da festa.

— Brigada.

E o que dizer agora? Ele não sabia e disse a ela exatamente isso, que não sabia o que dizer agora, embora ela soubesse exatamente o que ele queria dizer e fazer. Mas ela foi cautelosa e disse:

— Diz teu nome.

E o autor disse seu nome. Ela disse o seu em seguida e ele pensou: “Uma proparoxítona!”. Depois ele disse que no dia anterior procurava uma sandália semelhante àquela que a moça usava, mas não encontrara e acabou comprando o tênis que calçava naquela noite, ela olhou para baixo e disse:

— Bonito.

Talvez ela nem achasse bonito, talvez ela quisesse que ele fosse embora e a deixasse se divertir em paz, com as amigas, mas neste momento ele percebeu que ela segurava sua mão, embora até hoje ela negue esse fato, mas o que importa é que aquele gesto foi o suficiente para dar segurança ao nosso protagonista, que beijou a garota.

Ele só precisou daquele beijo e de ver as mãos dela para se apaixonar. E o autor pensou muito antes de escrever a frase anterior, por parecer cafona, clichê, mas escreveu e agora ele diz por quê.

Ele sabia que aquele momento e os que se seguiram junto a ela, por deixarem-no bastante feliz, iriam limitar suas palavras. A partir daquele instante, daquele tocar de lábios, ficaria cada vez mais difícil unir estes símbolos, que até então sempre foram tão familiares a ele, mas que se tornariam estranhos. Ele sabia. É como correr por uma calçada molhada, sabendo que vai escorregar, cair e doer, mas você vai, escorrega, cai e dói, só para saber como é a sensação ou porque o risco de sair ileso também existe ou ainda por saber que existe alguém para cuidar das suas feridas após a queda. Então ele correu e caiu, não sai nada da ponta de sua caneta nem seus dedos sabem mais por onde caminhar quando se deparam com um teclado de computador. Agora ele só sente, e o máximo que escreve são relatos, como este que está por acabar, sem profundidade, em duas dimensões. A terceira fica para ela.