ABNILSON

Foi quando Abnilson resolveu matar-se; já era demais, não haveria quem agüentasse. Ter sido, injustamente, mandado embora de casa foi a gota d’água – só a gota d’água; longe, bem longe de ter sido o único motivo.

Tudo começara, já havia quase trinta anos, quando seus pais deram-lhe o nome: Abnilson – poderiam ter-me dado nome pior? Se pelo menos tivesse sido Nilson – simples e secamente Nilson, sem Ab, sem floreio, sem traquinagem.

O menininho Abnilson, recém-chegado à escola, quando seus coleguinhas tiravam sarro de seu nome, mal sabia que aquilo era só o começo – seu nome infortunar-lhe-ia a vida inteira. Foi sempre o primeiro aluno da chamada; a sala nunca se silenciara completamente quando a professora chamava seu nome, era impossível ouvir: o pobre Abnilson sempre levava falta.

O menino Abnilson não era um menino inteligente, seu pai, aliás, sempre o achou um tanto burro. “Um menino de faculdades mentais normais tem capacidade de aprender a amarrar seus cadarços antes dos dez anos” – na verdade, Abnilson só aprendeu realmente a amarrar aos dezoito anos, mas é que quando Abnilson tinha dez anos, seu pai pegava muito em seu pé por ele ter reprovado a terceira série – “coisa de crianças com retardos mentais”.

E esse apoio paterno não fez muito bem à auto-estima do adolescente Abnilson. Na sétima série, apaixonou-se por uma menina – a mais linda e também a mais rica da classe --, enviou-lhe uma cartinha na qual teve o trabalho de desenhar coraçõezinhos azuis e vermelhos, as cores preferidas da menina; Abnilson teve seu primeiro insucesso amoroso – nem imaginava que era só o primeiro. Abnilson, tímido, pediu para que um colega entregasse a carta à menina; de longe, ele assistiu a cena: a menina leu, olhou-lhe à distância – portanto, Abnilson, sabia, ela tinha certeza de quem lha enviara --, minuciosamente ela rasgou a carta em pedacinhos, jogou no chão, pisou e ainda cuspiu em cima.

Abnilson ainda tentou outras cartinhas, mas, infelizmente, sem sucesso. Mais tarde, um pouco mais maduro, não mais inteligente nem mais bonito, recebeu alguns tapas na cara das meninas pelas quais se apaixonava.

Aos dezoito, alistou-se no serviço militar que, apesar da obrigatoriedade, sempre lhe foi assunto de grande interesse. Ficou horas estudando, autodidatamente, como amarrar um cadarço – “faz parte do currículo de um bom soldado saber amarrar seu coturno”. Abnilson nunca fora inteligente, mas até então, pelo menos, sabia ler; por alguma razão (implícita), fez confusão com a data de apresentação. “Realmente, meu jovem, na escrita, as palavras setembro e dezembro assemelham-se muito” – respondeu-lhe sarcasticamente o funcionário do exército três meses depois da data que lhe haviam convocado.

As palavras daquele funcionário ecoavam na cabeça de Abnilson enquanto ele caminhava pensando na morte como a melhor solução.

Devido ao incidente com o serviço militar, Abnilson era agora “Desertor da Lei”, e isso tornava muito mais difícil a procura por empregos. Parecia que ninguém queria empregar um homem que cometeu um erro, e eles não voltavam atrás com sua opinião mesmo quando Abnilson lhes contava a real história.

Muitos duvidavam que um dia Abnilson casaria – seu pai, eu ou o próprio Abnilson. Mas apesar das expectativas – das negativas expectativas – Abnilson encontrou um par. Heloísa não era feia nem magra nem tão burra, mas, ainda assim, ganhava de Abnilson em todos os conceitos.

Considerando que um dos cônjuges era desafortunado Abnilson, quatro anos foi tempo demais para o casamento.

O fim fora uma semana antes da decisão sobre a morte. Abnilson, ainda chorava as mágoas; ele ainda a amava.

Abnilson caminhava triste para o precipício do outro lado da cidade; caminhava: não tinha mais seu carro que comprara com tanto esforço trabalhando como vendedor autônomo batendo de porta em porta, a mulher levara-lho. Restou-lhe, ou melhor: restara-lhe as casas que seus pais lhe haviam dado, mas que, nesta manhã de quinta-feira – nesta mesma manhã quieta e cinza – deixou de lhe pertencer; seus pais despejaram-no: Abnilson não tinha mais onde morar.

Era preciso dar uma grande volta para se chegar ileso até o topo do precipício. Abnilson até cogitou a hipótese de escalá-lo, entretanto, optou por dar toda a volta – sabia que corria um grande perigo se tentasse escalar, escorregasse e não morresse. Abnilson queria o fim, não mais sofrimento.

Foi quando começou a chover. O dia já vinha cinza desde a manhã; garoara algumas horas antes, porém agora chovia de verdade.

Finalmente, Abnilson chegou ao topo. Encharcado até a alma; seus sapatos pesavam e cheiravam mal – provavelmente pisara em alguma coisa. Sentou-se em uma pedra à beira do abismo: seu último momento de reflexo. De lá de cima, embora a chuva dificultasse um pouco, era possível ver toda a cidade.

Chuva, carros, a correria de fim de tarde, ônibus, pessoas que, ao contrário de Abnilson, sentiam-se felizes, embora poucos tivessem reais motivos.

Cansado, Abnilson tirou os sapatos. Ao perceber o cheiro da coisa na qual pisara, atirou o sapato no precipício: nunca mais precisaria de sapatos.

Por mais que seu raciocínio não visse solução; por mais que sua reflexão não o estivesse levando a lugar algum ,seu instinto de sobrevivência impedia-o de jogar-se. No entanto, sem muito raciocinar, percebeu que algo bom aconteceu enquanto remoia suas mágoas: a chuva parara. E isso fez com que Abnilson, de certo modo, abrisse os olhos.

Ao ver o mundo correndo lá embaixo, sentiu-se privilegiado por estar no topo, vendo tudo do alto. Lá em cima, Abnilson sentia-se importante. Percebeu que, na verdade, ele não queria matar-se, aquilo era apenas uma maneira de expressar seu descontentamento consigo mesmo; era uma maneira de se posicionar contra as regras que se lhe criara. Pela primeira vez na vida, Abnilson não se sentiu burro; desta vez, justamente o contrário: Abnilson sentia-se inteligente; orgulhoso de ser quem era; orgulhoso por ter questionado seu modo de viver. Orgulhoso por chamar-se Abnilson.

Abnilson – o nome que lhe foi dado; o nome que lhe tornava único, diferente dos demais.

E, feliz por sentir-se inteligente, começou a concordar com as atitudes de seus pais. Primeiro, por seu nome – via lê embaixo milhares de marias, josés e joãos, mas sabia que não havia Abnilsons. E, segundo, por terem-no mandado embora de casa – era uma maneira de reconhecer sua capacidade; ele já era capaz de virar-se sozinho. Abnilson percebeu que estava mais do que na hora de começar a viver. Assim como desistira da vida, agora desistira do suicídio.

Pensou na Heloísa. Ela deixara-o; mas, apesar de tê-la amado, Abnilson sabia que conseguiria outras. Só o que lhe faltara era auto-estima – mas Abnilson era Abnilson, orgulhava-se disso agora; as pessoas que não lhe davam, reconhecimento não sabiam o que isso significava. Como aquela menina do colegial – aquela a que ele entregara a carta, a mesma que rasgara e cuspira na carta –, ela não passava de uma patricinha nojentinha,não sabia o que era a vida, e não conhecia quem era Abnilson.

Abnilson sabia que tinha talentos. Apesar de desertor da lei, ainda poderia viver como artista – ou mesmo filósofo, já que despertara sua inteligência, via que poucos o tinham feito e sabia que era capaz de ensinar-lhes a despertá-la. Abnilson estava realmente contente.

E, para celebrar seu contentamento, a natureza abraçou-o através de um lindo arco-íris que começou a maravilhosamente brilhar no céu.

Então, muito feliz – mais feliz do que jamais esteve –, Abnilson levantou-se e abriu os braços como se abraçasse o mundo. Abnilson finalmente acordara para o mundo e para a felicidade do mundo.

Feliz, ainda que sem sapatos, Abnilson resolveu ir embora, embora não soubesse para onde. E, como a vida sempre lhe pregou peças, por uma desgraça do destino, ao pisar descalço em uma pedra lisa, Abnilson escorregou, caiu no precipício e, para que seu conhecimento filosófico que acabara de descobrir não pudesse ser transmitido, Abnilson morreu.

willian pinheiro
Enviado por willian pinheiro em 05/04/2006
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