OBSESSÃO: A verdade sobre meu pai - cap. IV

Capítulo IV – Primeira Descoberta

Jean seguia a estrada. Como um louco, guiava o carro sem prudência. O caminho não era perigoso, salvo uma ou duas curvas mais fechadas que ofereciam maior atenção, porém, com o sangue borbulhando, a vida estava entregue à sorte a cada marcha aumentada.

Chegou à casa dos pais trinta minutos abaixo do tempo em que estava habituado a fazer. Mas a pressa foi em vão, demorando-se para sair do carro, vacilava em bater à porta. Imaginava que resposta daria se fosse inquirido a dizer sobre o verdadeiro motivo da sua visita. Balançava a cabeça, levava as mãos às têmporas, massageando-as com as pontas dos dedos. — E agora?

Chegou ao imenso portão de madeira. Seguindo a altura do muro, era impossível ver o outro lado. Hesitando muito, tocou a campainha levemente. O portão se abriu minutos depois.

Com a cabeça baixa, viu as pernas grossas e feias de Jurema, a empregada da família, parada a sua frente. Tinha por ele uma atenção especial, compensando a falta que os filhos faziam. Morando no interior do Ceará, quase nunca os via, assim o filho da patroa era o seu caçula, pelo menos em afeto. Não que substituísse o amor pelos verdadeiros, mas essa dedicação aliviava a dor, acalentando a saudade que sentia.

— Jean — exclamou com alegria — há quanto tempo! Veio aqui e nem falou comigo, não é? Já estava ficando preocupada com você.

— É o trabalho, Jurema, não sobra tempo para nada.

— Não me venha com desculpas. Venha me dar um abraço que estou com saudades do meu caçula.

Ao abraçar Jean, a mulher sentiu um prazer já esquecido naquele gesto de carinho. Parecia-lhe abraçar um dos seus rebentos. Emocionada, deixou que lhe rolasse uma lágrima pelos olhos negros. Compreendendo a tristeza que a incomodava, ele a deixou aproveitar o momento.

— Tem notícia dos seus filhos? — Perguntou-lhe, caminhando para a varanda da casa.

— Não muitas. Sabe como é, a última carta que recebi foi há um mês. Mas minha filha disse que eles estão bem. Conseguiram cavar um poço e a seca não vai ser tão ruim como no ano passado. Meu menino mais novo quer vir para cá, mas não acho que é uma boa idéia.

— Mas por que não?

— Porque eu quero voltar para minha terra e ele não tem lugar para ficar aqui.

— Como não tem? Ele poderia trabalhar aqui e morar na casa.

— Não sei se sua mãe vai gostar. — Disse ela entristecida.

— É claro que ela vai. Você sabe que tem muito serviço para ser feito aqui.

— É verdade! Eu sozinha quase não agüento.

— Pode deixar, vou conversar com ela sobre isso. Tenho certeza de que minha mãe vai concordar.

Jurema sorriu envergonhada, mas por dentro irradiava com a possibilidade de seu filho mais novo, deixado por ela aos cuidados da irmã ainda recém-nascido, fazer-lhe companhia até o dia em que pudesse voltar a sua família.

Puxando-o pelo braço, entraram na casa.

— Dona Elizabete, dona Elizabete, olha quem resolveu aparecer! — gritava a mulher para a patroa, repetindo a mesma frase. Sua voz rouca perdia-se pela casa e invadia os quartos.

Elizabete surgiu à porta da sala, via-se em seu rosto que os gritos de Jurema não a agradavam. Odiava gritarias, para ela, as pessoas deveriam evitar ao máximo elevar o tom de voz. Não só a voz a irritava, qualquer barulho provocava-lhe horríveis dores na cabeça, tomava vários comprimidos, mas dor insistia em molestá-la. Quando viu o filho sorrindo de braços abertos, correu em sua direção.

Calorosamente os dois se abraçaram. Demoraram-se alguns minutos antes de falarem qualquer coisa. O momento exigia silêncio. Naquele instante as amarguras foram compartilhadas, as tristezas divididas sem uma única palavra. Apenas os dois, mãe e filho, ambos sentindo o prazer do reencontro.

Depois de muito conversarem sobre coisas simples: trabalho, casa, amigos; Elizabete resolveu deitar-se um pouco. Não se sentia bem, as dores na cabeça eram intensas, a deixando louca. Às vezes, sentia vontade de tomar o remédio em uma quantidade muito maior do que a de costume, pensando ser esta a solução para os seus problemas, mas não tinha coragem.

Jean há muito estava preocupado com a mãe. Insistira para que procurasse um médico, mas ela não queria. Temia que o diagnóstico fosse ruim, por isso cancelava as consultas marcadas e fingia estar bem.

***

Jurema, no começo da noite, despediu-se de Jean e foi para a igreja, deixando-o à vontade para prosseguir com seu intento, uma vez que a mãe estava trancada no quarto há horas, depois de tomar uma grande quantidade de analgésicos.

Durante todo o tempo em que estivera acompanhado, Jean tateara a chave do escritório várias vezes, enfiando a mão no bolso repetidamente, chegando a despertar atenção para seu gesto. Agora, porém, o caminho estava livre.

Diante caos paterno, Jean, como um investigador explorando a cena do crime, procurava por uma pista que desvendasse o mistério. Instintivamente procurava por algo que justificasse seu empenho e fizesse valer a pena o tempo gasto nos últimos dias.

A mesa de trabalho possuía uma coluna de gavetas, todas trancadas, o instigando a conhecer seu interior. Tentou forçá-la, usando sua força, mas nada conseguiu. Procurou por uma ferramenta, um pedaço de madeira para forçar a fechadura, mas não havia nada parecido no escritório. Temendo sair e ser descoberto, desistiu da idéia. Buscou pela chave, encontrando um molho guardado em uma caixinha sobre a mesa, mas não serviram de nada. Nervoso por não conseguir abri-la, sentiu pela primeira vez a ira cega, o demônio adormecido na alma. Quis esmurrar a mesa até que se partisse. Seus olhos brilhavam incandescentes numa mistura de sangue e ódio. Nunca antes se sentira dessa maneira; era um animal selvagem e sanguinário à procura de mais uma vítima. A raiva instalava-se em sua figura serena, crescia cada vez mais como se não houvesse limites. Num momento de fúria indomável, arrancou a primeira gaveta de uma só vez, usando de uma força desconhecida. Pedaços de madeira e aço retorcido caíram ao chão molhados de sangue. Suas mãos estavam encharcadas, doíam-lhe os músculos e os ossos. Não se lembrava de alguma vez ter feito tamanho esforço, nem mesmo quando se sentia coagido. Esforçando-se para não gritar, suportou a dor que o consumia, espantado com o que acontecera.

Nada mais o separava do conteúdo escondido, mas o atordoamento era tão intenso que demorou a ver as inúmeras folhas espalhadas pelo chão. Esqueceu-se da dor imediatamente, preocupando-se apenas em recolher as provas violadas.

De joelhos, enquanto empilhava os documentos que derrubara, viu um estranho envelope lacrado, não havia nada que o identificasse, apenas a cor preta despertava a atenção. Temeroso, separou-o dos outros papéis e Decidiu que o levaria consigo. Estudou atentamente os documentos que encontrara, não descobrindo nada que realmente valesse sua obsessão. Os variados artigos e teses que lia, não lhe despertavam a mínima importância.

Horas depois, restando somente o envelope, hesitou em abri-lo. Tinha a mente cansada de leitura e não agüentava mais prender os olhos em uma única linha. Preferiu guardá-lo e mais tarde desvendar os documentos sigilosos.

Punha lentamente os papéis na mesa, enquanto corria com os olhos pelas laudas manchadas pelo tempo. “Não há mais nada a se fazer”, pensava desanimado, “tudo isso é uma imensa perda de tempo”. Sem nada encontrar, deixou cair o corpo exausto sobre a poltrona. Os olhos queimavam como brasas ardentes sobre a pele, causando-lhe uma dor insuportável. Cerrava-os e as lágrimas escorriam sem o menor esforço, lavando as retinas surradas pelo esforço constante a que foram submetidas. Teve a certeza de que por um simples capricho desperdiçou mais um dia de sua vida monótona. Adormeceu.

***

Na cozinha, Jurema estava desesperada. Andando de um lado a outro, resmungava preocupada. Chegara da igreja e viu o carro de Jean estacionado em frente ao portão. Quando entrou na casa, procurou por ele em toda a parte, mas não o encontrou. Imaginado que fazia companhia à mãe, não deu importância. Mas ao passar pelo escritório, ouviu passos no assoalho. Não demorou muito para concluir que Jean estava lá. “Mas como?”, ela se perguntava. Sabia que o falecido patrão jamais concordaria em deixar o filho, ou quem quer que fosse, invadir seu espaço. Desejou pôr fim àquele abuso, mas não teve coragem para bater à porta e mandá-lo sair. Pensava em uma forma de acabar com aquilo.

***

Quando acordou, Jean sentia-se estranho, o corpo doía muito. Sua cabeça pendia para o lado esquerdo, forçando o incomodado pescoço. As pernas estavam dormentes. Mexendo-as intensamente, tentava reanimá-las, Esfregando-as com força, fazendo o sangue circular. A sensação era terrível.

Levantou-se. Dirigiu seus olhos ainda embaçados para fora. Era tarde. Permanecendo à janela por algum tempo, completamente mudo, fitava o horizonte. O único gesto que fazia, era o mecânico levar, puxar e assoprar a fumaça do cigarro.

Cansado de tanta loucura, voltou os olhos para a sala. Arregalaram-se, o corpo estremeceu. O suor brotava em seu corpo, encharcando a blusa. Tentou gritar, mas o grito morreu mudo na garganta. Na poltrona, sentado a baforar um charuto, o vulto desforme de Charles o fitava enraivecido.

Em vão, Jean abria e fechava os olhos com a esperança de que o fantasma à sua frente desaparecesse como em um passe de mágica. Nada! A figura fantasmagórica ainda o observava, não fazia a mínima menção de desaparecer de suas vistas. Voltara para reclamar seus direitos.

Charles lançou-lhe um olhar reprovador e, em seguida, fitou o envelope sobre a mesa. O pânico despertado pela permanência do pai causava-lhe estranhos calafrios.

Só posso estar sonhando; dizia para si mesmo, enquanto esfregava os olhos.

Charles levantou-se da poltrona e caminhou em direção à mesa, obstinado a apanhar o envelope. Percebendo a intenção do pai, Jean atirou-se sobre a mesa, pegando-o primeiro. O fantasma continuava seu trajeto macabro, andando indiferente pelo cômodo. Jean atirou-se ao chão, derrubando tudo que estava sobre a mesa e se escondeu sob ela. Não sabia o que poderia lhe acontecer caso a aparição o pegasse. Gritou. No grito enfurecido a coragem lhe encheu o peito. Resolveu enfrentar o demônio que o intimidava. Ergueu-se irado.

A sala estava vazia. Não havia o menor sinal da presença de outra pessoa. Procurou cautelosamente pela sinistra aparição e nada via. Confuso, não conseguia distinguir a realidade da imaginação. Tudo era tão igual.

***

Jurema não esperou Jean sair do escritório para repreendê-lo. Pensou em comunicar à patroa o que o filho fazia, mas desistiu, não querendo intrometer-se em questões que não lhe diziam respeito.

Deitada em sua cama, olhava o teto, imaginando o que Charles diria se soubesse que Jean vasculhava suas coisas.

Não conseguia dormir.