MIURA

     Fez um esforço. Embora ardesse numa chama de fúria, tentou refrear os nervos e medir com calma possível a situação.

     Estava, pois, encurralado, impedido de dar um passo, à espera de que lhe chegasse a vez! Um ser livre e natural, um touro nado e criado na lezíria ribatejana, de gaiola como um passarinho, condenado a divertir a multidão!

     Irreprimível, uma onda de calor tapou-lhe o entendimento por um segundo. O corpo, inchado de raiva, empurrou as paredes do cubículo, num desespero de Sansão.

     Nada. Os muros eram resistentes, à prova de quanta força e quanta justa indignação pudesse haver. Os homens, só assim: ou montados em cavalos velozes e defendidos por arame farpados, ou com sebes de cimento armado entre eles e a razão dos mais...

     Palmas e música lá fora. O Malhado dava gozo às senhorias...

     Um frêmito de revolta arrepiou-lhe o pêlo. Dali a nada, ele, Miura, o rei da campina!

     A planície!... O descampado infinito, loiro de sol e trigo... O ilimitado redil das noites luarentas, com bocas mudas, limpas, a ruminar o tempo... A fornalha escaldante, sedenta, desesperante, que estrídulo das cegarregas levava ao rubro.

     Novamente o silêncio. Depois, ao lado, passos incertos de quem entra vencido e humilhado no primeiro buraco...

     Refrescou as ventas com a língua úmida e tentou regressar ao paraíso perdido.

     A planície...

     Um som fino de corneta.

     Estremeceu. Seria agora? Teria chegado, enfim, a sua vez?

     Não chegara. Foi a porta da esquerda que se abriu, e o rugido soturno que veio a seguir era do Bronco.

     Sem querer, cresceu outra vez o quanto pôde para as paredes estreitas do cárcere. Mas a indignação e os músculos deram em pedra fria.

     A planície... O bebedouro da Terra-Velha, fresco, com água limpa a espelhar os olhos...

     Assobios.

     O Bronco não fazia bem o papel...

     Um toque estranho, triste, calou a praça e rarefez o curro.

     Rápida e vaga, a sombra do companheiro passou-lhe pela vista turva. Apertou-lhe o coração. O que seria?

Palmas, música, gritos.

     Um largo espaço, assim, com o mundo inteiro a vibrar para além da prisão. Algum tempo depois novamente o silêncio e novamente as notas lúgubres do clarim.

     Todo inteiro a escutar o dobre a finados, abrasado de não sabia que lume, Miura tentava em vão encontrar no instinto confuso o destino do amigo.

     Subitamente, abriu-se-lhe sobre o dorso um  alçapão, e uma ferroada fina, funda, entrou-lhe na carne viva. Cerrou os dentes, e arqueou-se, num ímpeto.

     Desgraçadamente, não podia nada. O senhor homem sabia bem quando as fazia. Mas por que razão o espetava daquela maneira? 

     Três pancadas secas na porta, um rumor de tranca que cede, uma fresta que se alargou, deram-lhe num relance a explicação do enigma da agressão: chegara a sua vez.

     Nova picada no lombo.

     - Miura! Cornudo!

     Dum salto todo muscular, que quase de voo, estava na arena.

     Pronto!

     A tremer como vara verde, de cólera e de angústia, olhou à volta. Um tapume redondo e, do lado de lá, gente, gente, sem acabar. Com a pata nervosa escavou a areia do chão. Um calor de bosta macia correu pelo rego servidoiro. Urinou sem querer.

     Gritos na multidão.

     Que papel ia representar? Que se pedia do seu ódio? 
 
     Hesitante, um tipo magro doirado, entrou no redondel.
 
     Olhou-o a frio. Que força traria no rosto mirrado, nas mãos amarelas, para se atrever assim a transpor a barreira?

     A figura franzina avançou.

     Admirado, Miura Olhava aquela fragilidade de dois pés. Olhava-a sem pestanejar, Olímpica e ansiosamente. 
   
     Com ar de quem joga a vida o manequim de lantejoulas caminhava sempre. E, quando Miura o tinha já à distancia dum arranco, e sem compreender olhava um tal heroísmo, enfatuadamente, o outro bateu o pé direito no chão e gritou:

     - Eh! Boi! Eh! Toiro!

     A multidão dava palmas

     - Eh! Boi! Eh! Toiro!

     Tinha de ser. Já que desejavam tão ardentemente o fruto da sua fúria, ei-lo.
Mas o homem que visou, que atacou de frente, que cheio de lealdade, inesperadamente transfigurou-se na confusão de uma nuvem vermelha, onde o ímpeto das hastes agaçudas se quebrou desiludido.

     Cego daquele ludibrio, tornou a avançar. E foi uma torrente de energia ofendida que se pôs em movimento. 

     Infelizmente, o fantasma, que aparecia e desaparecia no mesmo instante escondera-se covardemente de novo por detrás da mancha atordoadora. Os cornos ávidos angustiados deram em cor. Mais palmas ao dançarino.

     Parou. Assim nada o poderia salvar. À suprema humilhação de esta ali, juntava-se o escárnio de andar a amarrar em sombras. Não. Era preciso ver calmamente. Que sua raiva atingisse ao menos o alvo.

     O espectro doirado lá estava sempre. Pequenino, com o ar de troça, olhava-o como se olhasse um brinquedo inofensivo.

     Silêncio.

     Esperou. O homem ia desafiá-lo certamente outra vez.

     Tal e qual. Inteiramente confiado, senhor de si, veio vindo, veio vindo, ate lhe não poder sair do domínio dos chifres.

     Agora! 
 
     De novo, porem, a nuvem vermelha apareceu. E de novo Miura Gastou nela a explosão de sua dor.

     Palmas, gritos.

     Desesperado, tornou-se a escavar o chão, agora com as patas e os galhos. O homem! 

     Mas o inimigo não desistia. Talvez para exaltar a própria vaidade, aparentava, dar-lhe mais oportunidades. Lá vinha todo empertigado, a apontar dois pequenos paus coloridos, e a gritar como há pouco:

     - Eh! Toiro! Eh! Boi!
 
     Sem lhe dar tempo, com quanta alma pôde, lançou-se-lhe à figura, disposto a tudo. Não trouxesse o pano mágico, e veríamos! Não trazia. E, por isso, quando se encontraram e o outro lhe pregou no cachaço, fundas, dolorosas, as duas farpas que erguia nas mãos, tinha-lhe o corno direito enterrado na fundura da barriga mole.

     Gritos e relâmpagos escarlates de todos os lados.
Passada a bruma que lhe fez nos olhos, relanceou a vista pela plateia. Então?!
Como não recebeu qualquer resposta desceu solitário à consciência do seu martírio. Lá levam o moribundo em braços, e lá saltava na arena outro farsante doirado.

     Esperou. Se vinha sem a capa enfeitiçada, sem o diabólico farrapo que o cegava e lhe perturbava o entendimento, morria.

     Mas o outro estava escudado.
Apesar disso avançou. Avançou e bateu, como sempre, em algodão. Voltou à carga.
O corpo fino do toureiro, porem, fugia-lhe por artes infernais.

     Protestos da assistência.

     Avançou de novo. Os olhos já lhe doía e a cabeça já lhe andava à roda.

     Humilhado, com o sangue a ferver-lhe nas veias, escarvou a areia mais uma vez, urinou e roncou, num sofrimento sem limites. Miura, joguete nas mãos dum Zé-Ninguém!

     Num ímpeto, sem dar tempo ao inimigo, caiu sobre ele. Mas quê! Como um gamo, o miserável salva a vedação.

     Desesperado, espetou os chifres na tábua dura, em direção à barriga do fugitivo, que arquejava ainda do outro lado. Sangue e suor corriam-lhe pelo lombo abaixo.

     Ouviu uma voz que o chamava. Quem seria? Voltou-se. Mas era um novo palhaço, que trazia também a nuvem, agora pequena e triangular.

     Mesmo assim, quase sem tino e a saber que era em vão que ameaçava, avançou.

     Deu, como sempre, na miragem enganadora.

     Renovou a investida. Iludido, outra vez.

     Parou. Mas não acabaria aquele martírio?

     Num último esforço, avançou quatro vezes.

     Nada. Apenas palmas ao ator.

     Quando? Quando chegaria o fim de semelhante tormento?

     Subitamente, o adversário estendeu-lhe diante dos olhos congestionados o brilho frio dum estoque.

     Quê?! Pois poderia morrer ali, no próprio sítio da sua humilhação?!

     Calada, a lâmina oferecia-se inteira.

     Calmamente, num domínio perfeito de si, Miura fitou-a bem. Depois, numa arremetida que parecia ainda de luta e era de submissão, entregou o pescoço vencido ao alívio daquele gume.

Miguel Torga, BICHOS,  Ed. Coimbra.

LordHermilioWerther
Enviado por LordHermilioWerther em 28/09/2009
Reeditado em 30/09/2009
Código do texto: T1836680
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