Vaidade

Ana era um travesti. Sem adjetivos, sem firulas: e ponto. Acordava todo dia por volta das três da tarde, afinal, trabalhava de madrugada fazendo shows em casas de festa, boates e afins. Seu trabalho não era mais a prostituição, era simplesmente exibir-se como DJ, coisa que lhe proporcionava imenso deleite, seu trabalho estava mais pra um hobby do que pra uma obrigação.

Sua primeira ação ao levantar-se era se admirar no espelho: o rosto já bem feminino por conta do tratamento hormonal, barba impecavelmente feita, um par de silicones muito bem comprados, barriga travada, pernas e bumbum delineados por anos de academia. Era uma travesti perfeita. Mas ainda assim não estava satisfeita, enxergava milhares de rugas no rosto e sua cor estava muito pálida, precisava de mais um bronzeamento.

Após sua reflexão matinal de si mesma, Ana ia cuidar de sua carreira. Através do notebook recém adquirido ela verificava e procurava novas divulgações de seus shows. Os comentários e elogios eram incontáveis, porém, ela precisava de mais. Nada daquilo lhe era suficiente.

Um dia Ana decidiu sair mais cedo. Antes da próxima festa passou numa botique e comprou mais um par de sapatos, os mais extravagantes da loja e foi trabalhar.

Chegando ao local já foi logo abordada por várias pessoas que pediam pra tirar uma foto com ela. Como uma celebridade carismática, atendeu rapidamente aos pedidos e dirigiu-se a uma espécie de camarim, preparado especialmente pra ela:

__ Alô?

Era um de seus ex namorados no celular:

__ Rafael, não! Eu já falei que não. Se quer me ver agora eu estou na Avenue, trinta e cinco a entrada. Devo tocar lá pelas duas da manhã. Tchau!

Entediada com o assédio, desligou o celular. Tinha que se preparar pra noite. Foi ao banheiro e preparou duas carreiras nada modestas. Normalmente ela nem usava muito, só quando sabia que a noite seria cheia e o pique estava fraco.

Foi para seu espelho e se adornou com suas jóias e acessórios mais caros. Com ela não tinha miséria. Mais uma olhada no espelho: estava maravilhosa, tirando a cor de sua blusa que lhe estava enjoando.

Beijou o espelho só pra deixar a marca de sua boca de quinze mil reais, mas ao ver mais uma vez o espelho, sentiu uma pontada forte nos pés, como se houvessem agulhas no sapato. Ignorou. Ao virar-se em direção a porta, sentira mais uma vez, porém não foi só uma pontada, mas a sensação de uma mordida. A dor fôra tão forte que ela gritou, mas ninguém ouviu. Com os pés dilacerados ela caiu. Seus sapatos se mexiam sozinhos. Ao ver a cena ela ficou paralisada de tão assustada e foi quando sentiu as mordidas no resto do corpo. Toda sua roupa se apertava contra seu corpo e a mastigava como um pedaço de carne.

Ela gritava e gritava, mas era em vão, ninguém ouvia nada se não a música do primeiro DJ da noite. Suas roupas, sapatos e bolsa a engoliam com voracidade. Ela já não gritava mais. Não era ela que consumia a vaidade, a vaidade que lhe consumia.

Nenhuma gota de sangue, nenhum pedaço de carne ou silicone, somente suas roupas, já inanimadas, estavam no chão da saleta.

Um tempo depois, uma das administradoras da boate entrou batendo a porta, indignada e gritando:

__ Cadê a Ana? A vagabunda não chegou ainda!