O Incrível Cão Pastor que Chegou a Senador da República

Há uma parte oculta na realidade que escapa à enciclopédia da Ciência e ainda não consta nos artigos do gênero humano. Este poderia ser um discurso evasivo da imaginação, que estivesse vazia de histórias. Mas não é esse o caso porque de fato às vezes nos surpreendemos com acontecimentos extraordinários. É um caso de espanto público; por isso achamos de vos precaver sobre coisas que são difíceis de explicar, caro leitor. Desarme-se um pouco da lógica, mesmo nesse reino de fantasia, pois sabemos que é difícil de acreditar, onde já se viu? Um Cão Pastor chegar a Senador da República!

Ouviram bem: “Cão Pastor”; “Senador da República!”. Há poucos dias José Brasil da Anunciação, concorrente de um partido opositor receberá de seu assessor o convite para participar da festa da posse desse nosso Senador, com sonoras palavras de indignação: “foi invejavelmente vitorioso nas urnas, alcançando a maioria dos votos legítimos”.

José Brasil da Anunciação estava às vésperas da velhice. Era um homem de caráter magnífico. Irrepreensível. Obstinado. Já há muitas décadas concorria ao cargo público. Desde que viera para São Paulo, em 1960, morar no Jardim Ângela, tentar cumprir a sina que sua mãe determinara no dia em que ele nasceu. Contam nos bastidores da política que sua mãe bebeu por toda a vida, até mesmo na gravidez de José Brasil e que ele mesmo nascera num bar em Alhandra, município da Paraíba. Quando o pequenino José sentiu o primeiro hálito de pinga e ouviu os primeiros palavrões que sua mãe gritava àqueles que a acudia, chorou mais alto de que qualquer ruído que havia naquele pequeno mundo e sua mãe num raro momento de consciência e lucidez compadeceu-se do pequeno e falou com voz cadente:” Nasceu aquele que vai dá jeito nesse Brasil de meu Deus!”

Tantas vezes fora derrotado nas urnas, mas nunca desistiu. Esse senhor, quando jovem, predisposto a granjear melhorias para o mundo, formulou um caderno volumoso de idéias, nascidas com êxtase nos sonhos. Preocupado com o país, correu estradas, às vezes de carona, discutindo com toda gente influente do meio político, expondo-o ao povo em praças públicas, mostrando aqui e lá com uma energia que lhe inflamava os olhos. Tentava convencer os ricos que a melhor solução para o país era igualar as classes e pedia a estes que dessem a décima parte de seus rendimentos aos pobres. Implorou as universidades que ouvissem as grandes soluções que ele propunha. Entretanto com o seu esforço nunca conseguiu convencer ninguém de que estava certo e este foi um dos motivos que o fez fundar seu próprio partido, candidatar-se a vereador e depois a Senador da República. No começo foi visto pelos demais da política como um homem perigoso, mas depois o próprio meio insistente e espalhafatoso com que empregava a política foi tornando-o um sujeito desacreditado e alvo de chacotas. Desde então veio se candidatando até perder esta eleição para o novo Senador para qual foi convidado para a festa de posse, como foi dito.

E foi José Brasil à festa de posse. Estava recomposto da derrota, sempre foi um homem que depositava grande sapiência ao desejo do povo e, por outro lado, pretendia manter-se próximo às figuras no poder. Era um acesso por onde podia disseminar as suas idéias. O Senador eleito estava faustoso, rodeado de gente. O povo convidado sequer observava o seu novo representante agradecer-lhe a confiança com acenos de rabo, que é o sorriso dos cachorros. O Senador ia bem. Metido num fraque preto, gravata borboleta, camisa lisa de cor branca, enfeitado por uma cartola feia, perfeitamente escolhida para tampar-lhe as orelhas pontudas e curtas. Ao traço da fina figura acrescentava-se ainda uma bengala sem função, um par de botas de montar e uns óculos transparentes, circular, encaixado na ponta do nariz comprido. Sabe-se muito pouco do passado desse nosso Senador. Apenas que vem de família muito rica, antiqüíssima, oriunda à corte de Dom João VI, e que há muito tempo habita os bastidores de Brasília. No conjunto é um sujeito carismático. Comporta-se muito bem em duas pernas, melhor que muitos homens em quatro. Contudo, está vestido com a elegância que o cargo merece, mas nos parece muito antiquado, passou despercebido pelos olhos da imprensa.

Parecia que todos estavam hipnotizados. José Brasil da Anunciação pretendia ficar pouco e assim que chegou ao Senado tratou logo de seguir ao salão de festas da casa a fim de cumprimentar o novo Senador. Mas logo que viu todos rodeando o Cão Pastor como Senador da República indignou-se tremendamente, persignando-se. Sentiu um arrepio no corpo e percebeu logo que ali havia peripécias do Diabo. Era um homem religioso e de imediato percebeu que o dito cujo havia enviado ao Senado brasileiro um anticristo, para requisitar ao inferno a alma de todo o povo. Previu a cobiça, o egoísmo, o fim da paz, da cordialidade e da obediência a Deus.

Apavorou-se com o encanto do tal Senador. E, novamente, persignou-se em frente a uma estátua de Nossa Senhora e rezou uma Ave Maria. Só ele via o que via. As outras pessoas rodeavam o Cão Pastor com um interesse sobrenatural e a impressa já noticiava, antecipadamente, a possível eleição deste para a presidência do Senado, sem desconfiar que lidassem com uma prosopopéia. José tumultuou o evento até que o levaram à enfermaria da casa para que se acalmasse. Mas nada o acalmava e ele, aos gritos, tentava convencer a todos que aquele senhor garboso se tratava do Diabo.

Mas não há homem só que possa lidar com uma multidão contrária sem perspicácia, calma e inteligência. José foi se acalmando até começar novamente a pensar. E dizia consigo: “calma José, calma José, você pode provar o que vê, mas precisa muito de Deus e paciência. Você há de expulsar o demônio”. Ministraram-lhe um calmante e ele dormiu por horas, o tempo necessário para que a imprensa esquecesse o episódio, a festa terminasse e ele voltasse para casa.

José sempre foi um homem religioso, mas a partir daí se apegou mais ainda à religião. Levantava-se às quatro da manhã e jejuava todos os dias até as cinco da tarde. Não se separava mais da bíblia, se acercou de santos e crucifixos.

Como cogitado, o Senador Cão Pastor logo se tornou o líder do Senado, mais que isto, o elo entre os partidos concorrentes, fazendo-se um hábil mediador de interesses. Adquiriu inúmeros amigos. Coisa de quem nasceu quedado por carinho no pêlo. Utilizava-se da manhosa estratégia de permanecer invisível, longe dos conflitos. Desde a posse veio trabalhando muito. Não foi candidato de prometer, mas com que velocidade vem sendo espalhadas as faças do seu mandato. Sem demora propôs a Emenda Canina a qual dava direito a biscoito de carne grátis a todos os cães dos familiares de funcionários do Senado, sem que ninguém do povo percebesse que ele estava privilegiando apenas uma classe: os cães. Todos estavam fascinados pelo Senador. Cada projeto que submetia à votação do plenário calculava um verborrágico discurso, carregado em retórica de palavras emocionais. Citava autores, a responsabilidade da representação pública e contagiava a platéia com a concisão e eloqüência de Rui Barbosa, enfeitiçando a todos. O Senado se altercava com as propostas de seu presidente. Estava eufórico. A influência do Cão Pastor contaminou a todos: a cantina, as reuniões às portas fechadas, os jantares nas casas dos parlamentares, colimando em uma possível candidatura do Senador à Presidência da República nas próximas eleições.

“Persuasão demoníaca” Era o que pensava José Brasil quando lia os jornais. Ele rondava o Senado à espreita, com a intenção de exorcizá-lo. Os corredores vazios faziam-no se arrepiar. Sentia a presença pesada do demônio e ouvia gargalhadas atrás de si. Tinha muito medo, mesmo assim o enfrentava. Noites e dias passavam para ele rapidamente, sem que percebesse. O cansaço o enfraquecera, abrindo caminho para os torpores mentais. A cabeça ficava pesada de tanto pensar e rezar. Era como se o tempo assomasse seu passado de luta nesse único episódio e resumisse o fracasso de sua vida numa dose diária. O homem estava sobre enorme pressão. E essa pressão cobrava-lhe urgência, ação. Embora aturdido não iria desistir. Tentou a igreja, os jornais, as autoridades estrangeiras, mas ninguém quisera dar-lhe crédito. Corria histórias a seu respeito em Brasília. E aquela sua vida enérgica pela política foi considerada excêntrica pelos jornais. Muitos publicaram insinuações de loucura, de neurônios afetados pelo alcoolismo de sua mãe. Os poucos amigos e correligionários tratavam-no com delicadezas, escolhendo palavras que não lhe afetassem, mas as conversas sempre versavam para o tal Senador-demônio.

José vigiava o Senador Cão Pastor em todas as sessões do Senado. Num dia desses, perdera a convicção de que este era o demônio e entrou por outra convicção que viera extenuá-lo tanto quanto a outra. O Senador estava sentado no Hall do Senado, no intervalo de uma reunião. Lia despreocupadamente o jornal. José, sentado no sofá em frente, rezando baixinho, aguardava um momento propício para lhe jogar água-benta, quando o Cão Pastor cruzou a perna de um lado para outro, deixando aparecer uma macha branca que tinha no interior da coxa direita. José se sobressaltou, quase não acreditando. Mas teve certeza, quando o Cão Pastor descruzou as pernas. “Mas vira-lata sem-vergonha! Maldito! Espera aí que eu já mostro quem é você!”, levantou-se imediatamente batendo com uma pasta de documentos nas costas do Senador, que assustado saiu correndo pelo corredor. Os seguranças bloquearam José, tratando-o com respeito. Mas ele não se continha e gritava: “Esse aí não é Senador coisa nenhuma, é meu cachorro, bicho ladrão. Bem que vi a semelhança. Esse aí eu expulsei de casa a vassouradas.” E tentou explicar aos seguranças e ao povo que estava em volta da confusão que aquele era o seu antigo cachorro, de nome pingüim, por causa das manchas brancas, um tremendo ladrãozinho de carne. Por várias vezes foi pego roubando as carnes que José deixava descongelar sobre a pia e que por isso mesmo foi posto na rua.

A história do demônio estava esquecida e José Brasil agora se comia de raiva, porque achava que a gente brasileira deixava se enganar por tudo, até mesmo por um vira-lata como o pingüim. Em detrimento a tal falta escreveu por ironia ao Reitor da Universidade de São Paulo, pedindo que aumentasse as vagas de oftalmologista, sabia que ia chegar aos jornais, disse ele: “... Pois o caso aqui no Brasil é grave, estando errada a expressão que tantos jornais andaram difundindo; o Brasil é um país de cegos e não de banguelas.”

Enquanto isso o Senador Cão Pastor ganhava mais prestígio, era uma celebridade blindada e cada vez menos podia ser atingida. Mas ao conhecer melhor seu inimigo José sabia que cedo ou tarde podia revelar essa farsa. Então astuciou que este jamais conseguiria resistir a carne crua. Comprou dois quilos de salsicha e foi esperar o Senador na porta do Senado. Assim que este apareceu, como era rotineiramente os repórteres se aglomeraram. José Brasil abriu caminho entre os microfones e tentou fazer com que o Senador comesse as salsichas à força. Novamente os seguranças da casa tiveram que impedir que José agredisse o Senador. Agora um pouco mais enérgicos esqueceram que ele também era um político há muito tempo freqüentador do plenário e a casa fizera uma proibição formal ao trânsito do antigo político José Brasil da Anunciação pelo ambiente do Senado. Era o fim à sua carreira política. Um soco.

Mas José não se deu por vencido, no mesmo dia ocorreu-lhe a idéia de recorrer à zoonose de Brasília. Porque eram peritos e em matéria de cachorro jamais poderia se enganar, uma palavra, e a sociedade cairia em si. Quem o atendeu foi um sujeito de poucas afinidades. Com ar de um cidadão comum José contou em pormenores sobre o Cão Pastor que andava se passando por gente. Mas antes que terminasse o funcionário o interrompeu: “Ih eu não mexo com esse tipo de gente não. Aí no congresso já escapei de umas boas. Essa gente protege mais cachorro que gente. E é melhor o senhor saindo daqui que tenho muito que fazer. Caso encerrado”. Foi o último soco.

Depois daquele dia José se entregou totalmente à depressão. Jogou-se na cama e não levantava mais nem pra tomar banho, há uma semana não comia. Falhara com Brasil, com a profecia de sua mãe e consigo mesmo. Então viu que era um homem só. Sem família, sem filhos, sem parentes, sem tentáculos. Não percebeu que em busca de sua ideologia se distanciou de tudo aquilo que se chamava sociedade. Parecia um parente distante do homem. E dia-a-dia, gradualmente, suas lembranças, sua consciência se apagava. Mas mesmo deitado não conseguia se conformar com o Brasil, e os brasileiros, que não enxergavam, que se curvaram para uma aberração, deixando-se guiar para o deleite e usufruto de um ser que se encaminhava para a presidência da República, onde sua força seria ainda maior, em breve os seus parentes cães, lobos, raposas ocupariam os cargos mais importantes transformando o país todo em um reduto canino, onde os brasileiros começassem a ganir e agir como cães, domesticados para os verdadeiros cães nos poder.

José precisava se levantar mais uma vez, sua mente confusa lhe motivava: “Vamos Zé, você é o homem que nunca desisti, vamos, vamos...” Sendo assim se levantou. Estava irreconhecível, muito magro, barbudo, sem forças, mas o terno lhe disfarçou bem. Tinha em mente procurar o presidente da câmara. Homem fantasioso que não duvidava de nada neste mundo. Principalmente, quando almejava se tornar candidato a presidente do Brasil em lugar do seu concorrente do Senado. Mas quando José, segurando sob o braço um maço de jornais velhos, entrou sem ser reconhecido pelo hall do Senado, em vez de ir à câmara, não havia ninguém no plenário. Era pausa. A minoria de senadores que apareceram naquele dia e seus assessores estavam fora, em seus gabinetes ou na lanchonete do Senado, fazendo lobby, conversando, tomando cafezinho. Em seus lugares no plenário onde estavam sentados ficaram apenas os paletós cingindo as cadeiras, e os laptops em frente a elas. José tomado de emoção moveu-se entre as cadeiras com os paletós, parou em frente da mais alta delas e falou em voz alta e firme como se um general pronunciasse: “Senhor presidente! Vim pedir-lhe a reparação de um erro em que estamos todos envolvidos. O presidente do Senado é um cachorro. Todos o vêem como cidadão respeitado. Mas não passa de um ladrão. Um larápio. Que se faz passar por gente para corromper toda a nossa sociedade. Exijo-lhe, não em favor da minha posição de colega, mas de cidadão, contribuinte, que se tome providências urgentes ou corremos o risco de sermos transformados todos em cães, em cães! Pois isso só pode ser obra do Diabo...” Não teve mais tempo, os seguranças já haviam o descoberto. Dessa vez, conseguiram interná-lo, com a ajuda de alguns poucos amigos que ainda lhe acudiram, para o seu bem. Mas José nunca mais se recuperou. A dor de não ter sido ninguém quando a velhice chegara o enlouqueceu? Parece que sim. É o que todos diziam nos bastidores do congresso, de parlamentares a jornalistas. Outras piadas e mais histórias apareceram até que um dia José Brasil da Anunciação foi completamente esquecido.

Quanto ao Senador Cão Pastor? Olhemos mais uma vez como anda. Já de carreira acertada, envia desculpas pelo assessor por não poder nos atender. É que a vida anda ocupada, preparando se para daqui a três meses concorrer à presidência da República. Pelo visto há boatos que já são verdades ou nascem para ser.

Sérgio Caldeira
Enviado por Sérgio Caldeira em 06/06/2011
Reeditado em 07/06/2011
Código do texto: T3018823
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