MARTELO AGALOPADO DE SÓFOCLES

Meus amados amigos recantistas... Li o texto de Sófocles e não resisti. Ousei transferir a tragédia Antígona para o sertão do Ceará. Desculpem-me se meu ímpeto parecer pretensão, trata-se mais de um experimento, de uma maneira de criar completamente nova para mim.

MARTELO AGALOPADO DE SÓFOCLES

"Deixa-me sofrer o tremendo castigo de minha temeridade! Por muito que eu sofra, nunca serei privada de uma bela morte."

Antígona (Sófocles)

COMÉDIA ANTIGA

Diziam no interior do Cedro, no Estado do Ceará, que não havia olho mais comprido que o do velho Tiré. Sabia de tudo e de todos, causos e histórias de tempos longínquos e esquecidos vultos, apesar da cegueira que adquirira ainda quando criança, após levar uma surra da mãe por ter escondido as aventuras paternas com as quengas de Iguatu. Bastava-lhe uma faca afiada e a ponta de um fumo de rolo para que ele matutasse lembranças enquanto mascava pequenos pedaços de tabaco, espremendo-os entre as gengivas acastanhadas que alavancavam recordações distantes enquanto o suco do vício descia pela garganta pigarrenta da qual saltavam romances sertanejos e impensáveis dramas da mata branca.

Eu ainda era adolescente quando ouvi da boca daquele senil narrador das vidas que aprisionava – algumas em sua memória, outras em sua imaginação – a história da filha de um outro cego, de nome Eudésio, a jovem a qual Tiré atribuía o título de mais formosa moça não só do Vale do Machado, mas de todo o Cedro, a primeira heroína a qual amei, cuja graça, segundo as palavras do velho, era Armina. As qualidades celestiais ditadas pela boca daquele esfarrapado contador de histórias e que projetaram em meus sonhos a imagem da jovem filha do infeliz Eudésio serviram-me de incerto norte para a infrutífera busca por uma companheira que me amparasse nesta vida o calor da carne e da alma, o que resultou em uma existência solitária, despida de amores e gozos, completamente voltada para a contemplação. Soubesse naquela época que jamais encontraria minha própria heroína, teria eu pulado de assalto dentro da boca do velho Tiré e, entre a viscosidade da saliva e do fumo, desposaria a dama das damas, real ou fingida, Armina.

Permitam-me então que eu parafraseie as palavras de Tiré – infelizmente, sem meios de recriar com original charme sua fala matuta – e conte a meu modo o relato dos acontecimentos que, segundo o velho bruxo, é verdadeiro. Faço isto não por mera distração, mas por fé cega naquilo que jamais me será comprovado.

Eudésio fora em outros tempos o homem mais rico do Cedro, dono de praticamente todas as terras do Vale do Machado, quando o algodão florescia viçoso e era a moeda forte do município. Sempre fora um mestre com os números, mas nunca se relacionara bem com as letras, e foi justamente a ignorância que o levou a mais completa ruína. Caíra nas armadilhas sedutoras de um homem que ambicionava tudo que era seu, um crápula manipulador que o fez assinar papéis dos quais Eudésio jamais lera uma única linha de três palavras curtas, o irmão de sua finada senhora, seu próprio cunhado, fora o enganador que o iludira de forma rasteira e fraudulenta, tornando-se o novo senhor da Cedrinho de Açúcar. Eudésio e seus quatro filhos, Amaro, Atávico, Adília e a bela Armina acabaram por ser expulsos da casa grande, passaram após o terrível golpe a viver de favor em uma choupana que não abrigaria com o mínimo de conforto sequer um casal de mulas, vassalos nas mesmas terras que por serpentioso engendramento haviam deixado de ser suas.

Primeiro uma febre, uma moleza infinita, depois a irreversível cegueira. Traído, pobre e cego, amofinou-se Eudésio em vertiginosa queda de sete palmos de altura. Se nosso Dedé continuar vivendo debaixo dos cascos dessa vergonha, ele vai morrer em triste penúria, minha irmã, queixou-se Armina em uma das muitas noites que mal dormiam devido aos sofridos gemidos do velho, amanhã a gente vai botar nosso pai em cima de uma carroça e ir embora pra Várzea da Conceição, Padrinho Timóteo sempre nos quis muito bem, há de nos abrigar, há de salvar nosso pai dessa agonia. E os menino, Armina, gemeu a tola Adília, que apenas falava quando consentia com a ordem de algum homem da casa. Amaro e Atávico vão continuar trabalhando no algodoal, se nós for tudo embora, o maldito do Clemente vai roubar da nossa família até esse curral que ele chama de rancho. Isso é uma desgraça, Armina. Coragem, Adília, coragem.

COMÉDIA NOVA

Através da conversa mole e despreocupada de um caixeiro-viajante, enquanto ainda debulhavam na varanda da casa de Seu Timóteo o rosário pelos sete dias da morte de Eudésio, Armina e Adília receberam a notícia de uma desgraça que havia sucedido pros lados do Vale do Machado, uma loucura, um crime em família. Contou o homem que o sobrinho de um abastado fazendeiro havia se unido a um bando de malfeitores e planejado assassinar o próprio tio a fim de tomar-lhe à força as posses que o homem conquistara ao longo da vida com o suor de seu trabalho e de seus dois filhos. Mas o intento do facínora fora descoberto por seu próprio irmão antes de ter realizado o desejo de sua vilania. Vendo seu plano perverso desmascarado, convidou o irmão para dançar com ele na ponta de uma faca e os dois então se atracaram, deus e o diabo levantando a poeira do chão do terreiro em um terrível bailado que resultou em três defuntos: o irmão-diabo, o irmão-santo e um filho do fazendeiro que em poucos dias se ordenaria padre, estava a visitar a casa do pai e se metera na briga por ser muito amigo do primo que não almejava o pão alheio.

Atávico jamais foi bandido, seu bosta! Aquela terra é nossa! Meu tio, o fazendeiro que o senhor defende sem saber dele a medonha procedência, roubou o que era de meu pai, que hoje é finado de tanto azedume no peito. Ai, Adília! O que fizeram nossos irmão? Se esfaquearam e ainda mataram o pobre do Zaqueu, um anjo, um santo, que nunca concordou com a maldade do pai, por isso decidiu ser padre, meu priminho, pra rezar pela salvação do excomungado do tio Clemente! Seu Timóteo, o senhor que era compadre de meu pai, por tudo que há de mais sagrado neste mundo, se é que sobrou um vintém de santidade na face da Terra, me leve pro Vale do Machado que Adília e eu carecemo de enterrar nossos irmão. Ai, Amaro, ai, Atávico! Por que nossa miséria ainda te parece tão pouca, Senhor? Por que continua açoitando nossas costa em carne viva se já perdemo tudo, menos a fé em ti?

Apodrecido, encontraram as filhas de Edésio o corpo de Atávico posto sobre a mesa de paus que ficava na cozinha da pobre casa na qual viveram após terem sido enganados pelo tinhoso do Clemente. Enquanto Adília ocupava-se em lamentar de joelhos pela morte dos irmãos que haviam tirado a vida um do outro, Armina dirigiu-se ao poço que ficava aos fundos da choupana e encheu uma tina d’água, a fim de assear o corpo do irmão. Com um xale delicado e fino que o pai havia trazido do Rio de Janeiro nos áureos tempos, asseou o fétido cadáver, disfarçando-lhe o cheiro acre das carnes putrefeitas com um perfume caro que pertencera à sua amada mãe. Senhor, fazei de mim um instrumento de vossa ira, subverteu Armina o verso do hino de São Francisco de Assis, tendo seus lábios deitados sobre a testa do irmão morto. Adília então cessou por um instante o prantear inútil e juntou-se à irmã em um ferido Pai Nosso. Após a reza, apenas o frenesi das moscas perturbava o mortal silêncio. Raiva. Luto.

TRAGÉDIA

Pode levar essa rede com esse excomungado daqui da frente da minha casa. Ai, como fede a perfídia deste imoral. O outro irmão de vocês, Amaro, foi enterrado como se enterra um homem, com missa campal e tudo, ao lado da mãe dele, minha santa irmã, mas o traste do Atávico vocês duas podem tratar de levar daqui antes que eu toque fogo na carcaça traiçoeira desse cachorro e jogue as cinza na merda dos porco, gritou Clemente às sobrinhas, que exigiam ter o irmão sepultado nas terras da Cedrinho de Açúcar, na fazenda onde nasceram, cresceram e pareciam todos destinados a morrer.

Pai, Atávico também é meu primo, é justo que o senhor, tentou intervir Zequias em benefício das primas, sendo com aspereza interrompido pela autoridade paterna. Tu agora haverá de chorar a morte do assassino de teu irmão? Bem vejo que tu ainda rói um bom osso por essa aí, pela filha do compadre Eudésio que quer ser mais que um cabra-homem. Tu fica sabendo logo de um coisa, seu traste, se tu ainda tiver desejo na Armina, vai logo desistindo de entrar numa igreja com ela porque derramamento de mais sangue não haveria de ser pior do que tu contrair casamento com a irmã do matador de meu Zaqueu. Tu quer o que, Zequias, me dar um neto amaldiçoado? Um neto doente? O sangue desse povo não presta, minha irmã era doida, se matou, Eudésio perdeu a visão assim do nada, os quatro filho são fruto de uma desordem das coisa, são uma afronta à natureza. E tu lembra, desinfeliz, que Armina é tua prima, que tal união na certa te daria um herdeiro aleijado.

Eu num quero teu filho não, tio Clemente. Filha nenhuma de Eudésio Cunha se amanceba com homem frouxo, acanhado. Quando eu era menina, eu também te queria, Zequias, mas naqueles tempo tu era um homem mais decente do que esse boneco de engonço que agora rejeito a esmola e o amparo. Meu irmão vai ser enterrado aqui, velho safado, espremeu Armina a frase dentre dentes que rangiam, os olhos em brasa, a mão da irmã pousada em seu ombro trêmulo. Tu acabou com nós, tio Clemente, tu cegou meu pai, esfaqueou meus dois irmão e matou teu próprio filho, meu bom primo Zaqueu. Tu é o diabo, tu nasceu numa encruzilhada, tem casco no canto das unha, se tem algum amaldiçoado aqui é tu. Atávico morreu por essa terra, então é nela que ele vai ser enterrado. Já cometi o pecado de sepultar meu pai apartado de minha mãe, não vou deixar tu separar o resto da minha família em seu derradeiro descanso, maldito ladrão de fartura e sossego. E se tu tentar me impedir de fazer o funeral de meu irmão no chão que é dele, tio Clemente, eu juro que haverá mais sangue no Vale do Machado que em toda a história da santa bíblia, eu hei de ser a ferida que comerá tua carne até os ossos. Mesmo que tu me mate, tio Clemente, o fantasma da minha agonia vai te perseguir pela eternidade. Eu te prometo uma dor maior que a minha, homem sem alma, se é que isso há de ser possível. Toma o rumo, Adília. Eu e tu temo um irmão pra enterrar.

Uma volta simples ao redor de uma haste na grade da cela, outra ao redor do pescoço alvo de Armina. Por não suportar a vergonha de ver-se presa no xadrez, tratada como uma criminosa pelo desejo autêntico de dar um funeral decente ao próprio irmão, enforcou-se no injusto cárcere, valendo-se do mesmo xale com o qual dias atrás havia limpado os sucos que ressumavam do corpo de Atávico. Adília perdeu-se louca no meio do mundo e dos anos, carregando sobre seus frágeis ombros o pesar de ter sobrevivido à morte dos seus. Já o revés prometido por Armina não tardou em cair sobre a família do malvado Clemente. Ao saber do suicídio da amada, Zequias plantou um tiro no peito, talvez a fim de calar o coração que se acovardara diante do despotismo paterno, uma bala o livrara da dor e condenara Clemente a uma precoce viuvez. Um filho morto quebrara tia Marilda ao meio, dois filhos mortos fizeram com que ela juntasse seus cacos através de algumas pastilhas de aldicarbe. Doeu. Agonizou. Zaqueu e Zequias mortos. Não, ela não poderia prosseguir.

Garantia a quem ouvisse sua história o velho Tiré que o perverso do Clemente cavou com as próprias mãos a cova na qual depositou o corpo mefítico de seu sobrinho Atávico. Apesar do cadáver que exalava miasmas, abraçou-se ao corpo apodrecido e de emanação morbífica e beijou-lhe as têmporas inchadas, antes de depositá-lo ao lado do sepulcro materno, talvez em um último esforço em tentar corrigir aquilo que em tempo algum poderia ser remediado.

Lembro-me que, naquela ocasião de minha juventude em que escutei a triste história de minha adorada Armina em uma noite de lobisomens na fazenda Nova Grécia, perguntei ao velho Tiré porque ninguém mais sabia daquela tragédia, porque eu nunca ouvira da boca de outra pessoa a infeliz história de Armina Cunha e seu irmão insepulto, ao que Tiré me respondeu com a sabedoria de um Sófocles de pés rachados, num há prudência em se ter ciência de tudo e de tudo se ter notícia, menino, há de ser mais vantajoso pra cada um de nós que muita coisa continue esquecida na ignorância dos que não sabem saber.

EMERSON BRAGA
Enviado por EMERSON BRAGA em 08/06/2011
Reeditado em 09/06/2011
Código do texto: T3021954
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