IMPRESSÕES DE UM ASSISTENTE DE LEGISTA I - Pinguinha

O médico apertou o interruptor no Instituto Médico Legal do Hospital das Clínicas, mas a energia vacilou e a lâmpada piscou por três vezes, acendeu e novamente apagou.

− Já abri o chamado na manutenção, mas ainda não apareceu ninguém Doutor.

O Médico caminhou no escuro até sua mesa, ligou o computador a aguardou que o Windows iniciasse. Maurindo manteve-se do lado de fora da sala no aguardo da luz acender. Vendo o rapaz parado o jovem medico questionou:

− Não vai trabalhar hoje?

− To esperando a luz acender. Desculpa aí Doutor, mas eu vou esperar ela esquentar. Não vou ficar ai dentro no escuro!

Há menos de dois meses Maurindo concluíra o curso de necropsia proporcionado pelo concurso público que passara. Não imaginava que fosse atuar diretamente no hospital ao auxilio de autopsias. Na verdade queria tirar impressões digitais de mortos ao longo da cidade de São Paulo. A nova rotina de ser assistente de um legista afligia sua mente e espírito. Muito mais do que seu antigo trabalho de vigia ao longo da cidade. Não possuía religião que o acalentasse diante de certeza da morte, e as lendas adquiridas quando criança sobre almas e mortos fomentava com mais vigor agora. Questionava-se se os míseros dois salários mínimos valeriam a pena por abrir corpos. Mas, a felicidade proporcionada pela estabilidade de ser um contratado do estado o trazia a razão, e para o homem morador da periferia; possuidor de um ensino médio precariamente concluído pelo ensino público, abrir mortos era a seguridade de uma vida.

- O que temos hoje? Quis saber o Médico calçando as luvas de borracha.

Da gaveta número sete, Maurindo trouxe o corpo de um garoto de nove anos, e passou para as mãos do especialista a prancheta gelada. O menino trazia ainda no corpo a sujeira da vida, resquícios de uma estadia na terra onde sujeira e homem vivem pacificamente a margem da sociedade. Era branco, e a palidez cadavérica reluzia no couro cabeludo ainda oleoso. O cheiro ocre da gaveta era o seu cheiro. Um objeto de estudo, um teco da humanidade estirado sobre a mesa de autopsia.

Para o assistente a sede de conhecer a verdade que o levou a este fim falava ao seu coração. Para o Doutor Brianezi, a frieza da medicina o impulsionava a concluir com exatidão a causa do óbito. Examinou superficialmente o garoto e ordenou ao assistente:

- Lave-o e abra do tórax a virilha esquerda, retire o externo e separe as vísceras dos órgãos. Cuidado que ele esta cheio de líquido e pode expelir com a extração do externo. Use a cerra menor, não importa que demore ao menos fará menos sujeira.

Enquanto cumpria sua função reversa de Abrão á Isaque, Maurindo traçava a história do corpo em sua frente. Com certeza um morador das favelas, que maculavam o formato moderno da paisagem Paulista. Mais uma das tantas crianças que perambulam por aí, a busca de abraços de mães que não os enxergam, querendo os conselhos dos pais que não suportam dispor uma atenção ao pequeno ser. Provavelmente mais um que sonhara ser um jogador de futebol para proporcionar á família a bonança que nunca pudera ter. Mais um que nasceu predestinado a ser entre tantos ratos que perambulam assolando a paz dos trabalhadores. Os números primos pós as vírgulas das pesquisas de desigualdade do desigual e prospero Brasil.

Brianezi examinou os deteriorados órgãos, remexeu nas vísceras e pequenas mostras do fígado foram postas em microscópios. Em tubos de ensaio dançando no mórbido balanço das máquinas de analise sacolejavam minúsculos pedaços do que um dia foi uma criança. Era a morte se fazendo viva na busca humana de decifrá-la, no mapeamento de seus silenciosos passos que deixam pegadas amargas.

- Pode fechar. Ponha serragem porque ainda vai soltar muito líquido.

- Do que ele morreu Doutor?

- Cirrose. Pronunciou secamente afundando o olhar na certidão de óbito que concluía.

Sim. Estava certo. Ele foi mais um que a irracionalidade paterna atraiu para o rio amargo da bebida, mas o tempo para ele foi mais rápido, em nove anos, míseros nove anos e o destilado da cana, a mesma cana que fornecia o açúcar que deveria ter sido posto em sua mamadeira foi seu fim. Como pode uma mãe dar cachaça para uma criança ao invés do leite. Não era justo, ele não sabia que lhe faria. Porque o ser humano era assim? Onde poderia uma criança se defender da amarga malvada pinga, se aquela que lhe trouxe a vida lhe servia de alimento? Em sua análise sentimental Maurindo o nomeou “Pinguinha”. O pobre Pinguinha nunca saberia o que era ser um ser feliz livre das mazelas da sociedade, sem vícios, sem a opressão da desigualdade. Odiou as mães desnaturadas, amaldiçoou aos visinhos que cuidavam de suas próprias vidas, e não se apercebiam que a uma mãe matara o seu próprio filho com o veneno da entorpecente razão dos homens. Vociferou contra si mesmo por beber a cervejinha nos domingos de sol. Desgraçou e desejou que aquele, que criara a cachaça ardesse no mais longínquo quinto dos infernos.

Uma lagrima gordurosa escorreu pela magra face, e pingou na testa fria de Pinguinha. Lembrou-se de sua própria mãe, agredida pelo marido, seu pai cego pela bebida. Que sofrendo calada, acuada feito bicho no mato, desejando a morte daquele que um dia amou não se apartou de seu filho. Fez de Maurindo um homem de bem. Agora um funcionário público. Não passariam mais fome. Não pagaria mais aluguel. Eram parte de uma sociedade onde se pode sonhar com o melhor que a vida pode oferecer.

Terminado trabalho: - Muito bom Maurindo. Ficou bem fechado.

- Mas como ele pode ter morrido de cirrose, Doutor?

- Simples, foi decorrência de hepatite B seguida da Delta. È muito comum nestes casos que o doente morra de cirrose, principalmente se for uma criança como esta!

De olhar murcho, mas tranquilo, o assistente guardou novamente a criança de volta a gelada gaveta.