IMPRESSÕES DE UM ASSISTENTE DE LEGISTA II- Militar contra Civil

O celular de Maurindo tocou a música “entre tapas e beijos” cantada pela banda “Calypso”: era o Doutor Brianezi do outro lado da linha:

- Desculpa atrapalhar seu almoço, mas preciso de você, urgente, aqui no IML.

Estirado um homem de 30 anos. O corpo estava sujo, as roupas rasgadas ao pé da maca, e o cheiro ocre do suor humano ainda reinavam nele. O médico legista vestia a mascara olhando-o superficialmente. As luvas brancas traziam nas pontas o sangue coagulado. Entrou Maurindo.

Maurindo; Desculpa a demora Doutor, mas é que ta um tumulto na frente do hospital. Tem um bando de repórter e a polícia, uma verdadeira bagunça! O senhor não vai acreditar; uma moça da TV começou a gritar que eu trabalhava no IML quando leu no meu jaleco. Derrepente um monte de gente tava envolta de mim fazendo um monte de pergunta. E eu não sabendo de nada. Quem me livrou foi o Edney da faxina, que passou com o carro de lixo, e quando o povo se afastou para ele passar eu corri pra dentro do hospital.

O médico riu do assistente, e da situação. Calçou suas luvas, vestiu sua máscara, para iniciar o trabalho e postou-se ao lado do Doutor. - Estou terminando de tirar as balas e então você o lave. Esta vendo aqui? – apontou para o tórax no lado esquerdo – abra até a virilha e depois até as axilas na região onde a bala entrou, vire o corpo e abra do lado direito em diagonal onde tem outra entrada de bala.

Assim fez Maurindo. Não sabia ainda a história do corpo a sua frente, apenas que daquele momento em diante fazia parte dele, de uma forma incondicional ele o Doutor seriam o ponto final da história do homem na maca de autopsia. Ao contar com as roupas sujas, uma bala no peito, outra nas costas, o corpo cheio de escoriações decorrentes de ferimentos ainda em vida, traçou a existência do rapaz.

Outro bandido como muitos que vagam pelas ruas paulistas. Quem sabe não tentou roubar um pobre trabalhador ao retorno do trabalho? Estes sem piedade. Cresceram para espelhar o medo entre aqueles de bem. Sem remorso agrediam senhoras, que na humilhante ação de retirar do banco a parca aposentaria viam seu alimento fugir a passos largos. Bem feito, pronunciou baixo de dentes cerrados. Até que enfim a polícia tomou uma atitude sensata, matou um marginal.

O legista voltou à análise do corpo. O assistente fez uma ligação para o médico, e em minutos entrou na sala o especialista em balística da polícia militar.

Paulo Mattos dava mais uma mordida em seu sanduiche, ouvindo as informações do legista, olhando o corpo a sua frente. Maurindo indignou-se por Paulo Mattos. Como pode comer diante do corpo? E ainda todo aberto?

Desta vez cogitava em seu interior, que o vagabundo justamente morto, poderia ser um que tentara matar um policial. Novamente bem feito! Foi surpreendido em uma fuga de moto como os marginais de São Paulo o fazem. Mas desta vez o lixo social partia para não mais voltar jogado na cova feito merda na fossa, deixado aos vermes que são seus comparsas de sujeira.

Paulo Mattos abandonou a sala.

- Então Doutor, o que foi?

- É. Uma bala acertou coração e a outra perfurou um pulmão. Ambas provocaram hemorragia. Foi a óbito em minutos. Afundou-se na conclusão da certidão.

Maurindo lembrou-se quando morava com a mãe em um barraco na favela de Heliópolis, logo após a morte do pai. Uma noite ao chegar do trabalho encontrou a mãe jogada no chão da cozinha. Estava coberta pelo próprio sangue. Um marginal, como o que estava na maca, concluía, arrombou a porta na busca de algo para trocar por droga. A pobre senhora reagiu e foi esfaqueada no ombro. No mesmo hospital das Clínicas onde agora seu filho é funcionário, foi socorrida. Mas a vida nunca mais voltou ao normal. Não retornou á mobilidade que possuía antes. O braço; seu ganha pão, sua ferramenta de trabalho na árdua função de lavar, limpar, torcer, e esfregar as mansões dos ricos em Higienópolis não mais poderiam ser feitos por ela. O ódio fomentou em si por muitos dias. Mas dissipou quando pela graça passou no concurso público, e junto com a mãe mudou-se para um apartamento popular na zona sul da cidade.

Um policial civil bateu á porta da sala, Maurindo na conclusão da sutura do lado frontal do corpo assustou-se. Pouco viu da feição do policial civil, que logo foi retirado de lá por um dos dois oficiais militares que vigiavam a entrada.

Costurou violentamente o corpo, queria vingar-se nele o que sofreu sua mãe. Descarregava nas mãos e na ponta da agulha toda a raiva que possuía em seu ser. Não sentia piedade da família daquele que jaz em suas mãos, queria que a família sofresse. Se ele foi o que foi, era por má criação. Por falta de corretivo e por displicência de pais que permitiam que vivesse na vagabundagem durante a infância e adolescência.

Terminado trabalho: - Muito bom Maurindo. Ficou bem fechado. Tem umas partes que você apertou demais, mas não tem importância, não vai ficar a vista mesmo!

- Então Doutor do que o vagabundo morreu?

- Não faça isso! Maurindo manteve-se estático diante da repreensão do médico.

- Ele foi vítima. È um pobre que voltava para casa e os policiais civis o confundiram com um assaltante de banco e atiram a queima roupa.

Lagrimas inundaram os olhos do assistente. O peso da consciência o martirizou: - Mil desculpas, Doutor.

- Tudo bem. Eu recomendo que quando você sair, não fale com ninguém sobre este caso. Se fizerem muita insistência diga que é apenas o assistente do legista e que não sabe de nada. Para o seu bem. Pelo que soube os policiais militares estão cuidando do caso, mas os civis que foram os responsáveis pelo crime querem esconder a história. Por isso, seja o mais invisível possível.

- Sim senhor!

De olhar murcho, mas tranquilo, o assistente guardou o homem na gelada gaveta.