Uma chuva de folhas.(EC)
 
O caminhão sacolejava pela estrada de terra mal cuidada deixando atrás de si um rastro de poeira. Antes que ouvisse o barulho do motor ela sabia que alguma coisa se aproximava do povoado porque os cães começaram a latir, primeiro um, depois outro e logo todos ladravam, alguns de uma forma tão soturna que mais pareciam uivos. Ela saiu de casa e colocando as mãos sobre os olhos para protegê-los do sol logo adivinhou a poeira que se alastrava chegando ao topo do morro antes que o veículo ficasse visível. Poucos segundos depois percebeu que era um caminhãozinho velho que logo descia o morro em sua direção. Um simples gesto e logo os cães a cercaram, sem parar de latir. Ela não se incomodou em mandá-los calar, não sabia quem chegava e queria que percebessem que estava protegida.

O caminhão logo parou a sua frente e ela percebeu o quanto estava estragado. Era espantoso que ele ainda rodasse e tivesse conseguido chegar até ali. Na cabine três pessoas, mas só o motorista desceu .. Era um homem alto e  magro e se dirigiu até ela com passos firmes. Na cabine percebeu duas mulheres, lenços amarrados nas cabeças. Certamente eram ciganos procurando lugar para acampar. Não se assustou, estava acostumada com eles e não se importava quando chegavam e lhe pediam permissão para acampar, como se fosse a dona do lugar. Ela nunca negara, embora não lhes desse muita conversa. Nunca lhe causaram nenhum dano, nenhum aborrecimento, pelo contrário, quando partiam deixavam-lhe presentes úteis, como os tachos de cobre onde fazia suas compotas e geleias. Em troca ela sempre os presenteava com os doces e até um ou outro bordado, lenço para as cabeças, quando sentia alguma ligação especial com alguma das mulheres.

Mas não era um lugar para acampar que o grupo queria. Havia uma mulher adoentada, precisava, a conselho médico, de um lugar para recuperar as forças. Supuseram, erroneamente, que ela pudesse lhes emprestar uma das casas vazias para que  a mulher e uma de suas filhas ficasse ali até que voltassem para busca-la. Ela não podia fazer isso, nenhuma daquelas casas era  dela. Seu erro foi aproximar-se da carroceria do caminhão, onde uma mulher velha e macilenta repousava,  cuidada por outra, bem mais jovem. Olharam-se e nesse momento ela teve certeza de que as convidaria para ficar um tempo em sua própria casa. E foi o que fez. Tinha um quarto vago com duas camas, podia abrigá-las por algum tempo.

Percebeu o alívio em todos  os rostos e logo trataram de alojar as duas em sua casa. Desceram com os poucos pertences, a velha praticamente carregada pelo homem, seu filho, as outras carregavam as trouxas com os pertences. Eram bem pobres, ela logo percebeu, mesmo assim queriam deixar parte dos mantimentos que levavam. Ela recusou, não precisava, sua despensa seria suficiente para alimentá-los até que voltassem.

A velha cigana não tinha nada grave e no dia seguinte, já descansada e alimentada nem parecia doente. No final da tarde do segundo dia ela saiu com a cigana mais nova para fazer uma caminhada enquanto a velha repousava no quarto. A jovem cigana, Tereza, depois de certo tempo enquanto andavam contemplando a natureza, disse, falando baixinho como se fosse um segredo:

- Ela é uma adivinha.
- O que? Uma adivinha? Mas todas as ciganas não são adivinhas?
- Ah, não, de verdade, não. A maioria de nós finge, para ganhar a vida. Com ela é diferente, ela realmente sabe as coisas que vão acontecer. Foi ela quem ordenou ao meu irmão que nos trouxesse aqui. Disse que precisava passar uns dias com você.
- Comigo? Mas nós nem nos conhecemos!
- Ela não precisa conhecer para saber. Ela manda e nós obedecemos.
- Mas por que ela quer passar uns dias comigo?
- Isso ela não disse. Falou apenas que precisava se encontrar com a moça dos cabelos de fogo. Você tem os cabelos da cor do fogo. Quando a vi comprovei mais uma vez que ela acerta tudo. Agora temos que esperar. Na hora certa ela vai falar.

E assim falando Tereza calou-se e fez menção de voltar para casa. Penélope deixou que ela se fosse e ficou ali, parada, junto ao rio, junto a árvore, pensando. Um vento frio soprou do norte e as folhas das árvores começaram a cair, como se estivesse chovendo. Uma chuva de folhas, ela pensou. Todas as vezes que isso acontece, minha vida muda, como se o vento me levasse para uma direção completamente diferente da vida que estivesse vivendo. Outra vez, ela pensou, vou ter que começar tudo de novo. Porque ela também tinha certeza de que, o que a velha cigana tinha para lhe dizer, faria com que, mais uma vez precisasse recomeçar. Lutando contra as lufadas que jogavam contra ela as folhas ela desceu em direção a casa. Quando se aproximou da varanda o vento também parou e ela viu Sara esperando-a no portão.

Este texto é parte do meu romance A mulher Ensombrada e faz parte do EC Adivinha, tema sugerido pela Nena Medeiros. Não deixe de ler os outros textos.
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