IMPRESSÕES DE UM ASSISTENTE DE LEGISTA III - O olhar de Angélica

Maurindo entrou no IML do hospital das Clínicas. Pegou a prancheta na mesa do legista, e seguiu as orientações para limpar o corpo para análise. Puxou a gaveta 13, colocou na mesa o corpo com o plástico ainda envolto. Aquele dia nada alteraria seu humor; era o que pretendia. Sua mãe que sairá de uma forte gripe era sua maior alegria.

Abriu o zíper do plástico azul turquesa, a luz iluminava a direção da cabeça do cadáver, e então ele vislumbrou, o rosto mais angelical que poderia ter visto em um cadáver. Os contornos leves da expressão facial, a boca desenhada ainda pela cor do batom rosa, as bochechas sem a cor da vida reluzia uma brancura de beleza. Manteve-se preso aquele rosto por minutos sem dizer palavras. Completou a abertura do zíper e o atordoamento o dominou. O copo tatuado por escoriações e hematomas de sangue coagulado estava à vista pela micro saia rasgada, a mini blusa acima do umbigo revelava a agressão que sofrera. Toda essa composição quebrou a imagem angelical que havia formado dela.

Tirou a roupa cuidadosamente em movimento meticulosos e a lavou. A pele tornou-se mais branca e um tom azulado formou-se depois de seca. Os seios fartos não apresentavam marcas, entretanto a região pélvica e lombar era só ferimento de cortes profundos. Embevecido por aquela imagem teimou em aceitar a hipótese que formulava em sua mente. Não havia outra explicação! Ela jogava-se no mundo sujo dos prazeres masculinos. Abandonara sua jovem vida nas mãos daqueles que a tratavam como um simples pedaço de carne de desejo, e cuspida nas ruas de São Paulo como um chiclete que perdeu seu sabor.

Doutor Brianezi entrou no IML, o assistente ao estava a um canto, fundado a cabeça entre os ombros, numa suplica a si mesmo de piedade. A melancolia sempre presente no ambiente fazia-se maior com a tristeza de Maurindo. Identificou o corpo na maca para analise, limpo como havia solicitado por e-mail. As vísceras e órgãos internos pousados ao pé dela, mas os olhos estavam presos por fita adesiva.

– Bom dia, Maurindo?

– Oi Doutor, respondeu a seco.

– Tudo bem com você?

– Não senhor.

Não passava pela cabeça de Brianezi o que afligia a mente de seu assistente. Sem fornecer maior importância á reclusão de Maurindo iniciou seu trabalho de análise ao cadáver. Fígado perfurado por arma branda, duas costelas quebradas e um pulmão perfurado por osso, sêmen no útero, rompimento das trompas de falópio e no canal reto.

Olhando em meio a penumbra a atuação do especialista, Maurindo sentiu repugnância e medo. A pureza cadavérica dela, que apelidou de Angélica, contrastava com sua demoníaca vida. Isto era uma certeza para o jovem rapaz. Angélica padecerá por ter se entregado aos caprichos do demônio. Fornecerá seu corpo ao deleite dos servidores de satanás e o próprio diabo fora o carrasco do juízo divino. Mas, um grande mas, pairava sobre as certezas que o jovem assistente formulava. Era linda, e seu corpo o atraia. Custava-lhe acreditar que fosse uma perdida, não queria aceitar, não podia admitir; entretanto era uma certeza, ela era uma sem alma, Deus o revelou! E sentia dentro de si que o fora escolhido pelas hostes celestiais para cumprir os desígnios divinos:

– Doutor? Chamou Maurindo ao sair de seu torpor.

– Fala Maurindo. Respondeu sem o olhar direto.

– Esta moça não estava morta.

– O que? Desta vez quem assustou foi o médico.

Maurindo saiu da penumbra, caminhando em direção ao especialista, espalhando pelo refluxo da iluminação incandescente ao bater em seu jaleco branco, e reluzir ao dar de encontro à prata da geladeira, iluminando tudo ao seu redor. Os olhos encharcados compunham com as pesadas mãos ao lado do corpo a imagem de um mártir.

– Como é Maurindo?

– Ela estava viva, Doutor...

– Impossível. Eu mesmo a examinei quando chegou na noite passada. Além do mais, ela estava na geladeira há quanto tempo? Oito, nove horas, não sei ao certo, mas...

– Ela estava viva, Doutor, eu sei. Depois que eu lavei ela... Não resisti e fiquei olhando, ela é muito bonita. Olha Doutor, não pensa coisa ruim de mim, é que... Ela é muito atraente mesmo morta e...

– Não estou entendendo Maurindo? Seja direto.

– Ela abriu os olhos. Sim, ela abriu os olhos e me olhou friamente, como se me acusasse de desejá-la mesmo depois de morta. Ela me olhou com dois grandes olhos azuis. Olhos de acusação...

Brianezi, segurou-se para não rir da angustia de seu assistente. Sabia que o susto devia ter sido grande, mas dada as circunstâncias, não conseguia encontrar outra reação. Virou-se de costas para ele, protegendo do constrangimento que a gargalhada solta poderia impor.

– Mesmo assim, eu a abri!

Ainda de costas não teve como conter o pequeno gruído que a pulsante gargalhada presa chiava. Virou-se para o assistente, as lagrimas da contenção eufórica corriam pelo rosto. Conteve-se ao fim. – Maurindo, ela não estava viva, e você não a matou. Isso tem de ficar bem claro!

– Mas eu vi.

– Sim, eu sei o que você viu. Foi um reflexo motor retardado, é muito comum, pelo incrível que pareça. Quando se esta abrindo um corpo corta-se algumas veias e canais que ainda possuem alguma carga energética, e isso pode ser refletido no corpo com um levantar de braço, abrir e fechar de mão ou de olhos, e no pior dos casos o morto pode soltar gazes e defecar na mesa de autópsia.

Maurindo ainda não estava convencido:

– Além do mais, tudo o que esta menina sofreu, ela não resistiria. Foi pega saindo da igreja. Os assassinos tiraram a roupa que ela estava vestindo e coloram as que você tirou, depois a violentaram como animais. No que analisei deve ter resistido no máximo de uma á duas horas.

Maurindo costurou o cadáver, sentindo no próprio corpo a leveza que a razão humana pode lhe proporcionar. Ao fim o legista veio examinar o serviço: − Muito bom Maurindo. Ficou bem fechado!

De olhar murcho, mas tranquilo, Maurindo guardou de volta Angélica na gelada gaveta.

Robson Di Brito
Enviado por Robson Di Brito em 01/10/2011
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