IMPRESSÕES DE UM ASSISTENTE DE LEGISTA IV – Copo de leite

Maurindo entrou no IML. O semblante carregado, algo que Dr. Brianezi não soube distinguir:

– Tem uma senhora para análise, mas faremos amanhã; tudo bem Maurindo?

– Eu gostaria, se possível, que fizesse hoje Doutor. Amanhã não poderei vir.

O legista titubeou por alguns segundos e por fim aceitou o pedido do assistente.

Da gaveta número 25, número trocado de posição era a idade da negra senhora que jazia por debaixo do plástico azul turquesa – 52 anos.

Desta vez o jovem assistente deixou cair de leve o jato d’água sobre o corpo sem vida. Diferenciando todos os banhos póstumos que já dera, e quando secou o cadáver, fez com pano novo e branco, não com a flanela verde do IML. Ajeitou os finos cabelos brancos atrás das orelhas geladas da senhora e deitou solenemente o olhar cansado no seio esquerdo dela:

– Abra somente a caixa torácica, e retire as vísceras.

O bisturi cortou de leve a carne, como uma mão macia que despetala um girassol. Quando retirou o externo fez com carinho e leveza; não forte e firme como quando se desossa um frango. Colheu como a colhida de uma virgem ao tirar da beira de rio lilases narcisos, os órgãos internos.

– Hoje você esta lento. Aconteceu alguma coisa. Brianezi não aguardou a resposta e respondeu por ele. Já sei, brigou com a mulher?! Não se preocupa logo passa. Na minha gaveta tem o telefone de uma floricultura. Leva umas flores para ela.

Observou os longos dedos de o especialista tocar o corpo da senhora, desejou pular sobre o médico, cortar-lhe os dedos com os dentes e fazer ele mesmo a autopsia, mas se conteve:

– Está aqui. Disse o legista apontando com o cabo do bisturi.

O ar gelou, faltou respiração, a pressão da cabeça aumentou e Maurindo achou que iria desmaiar a qualquer momento, mas mesmo assim observou o local onde o médico apontará.

No meio do coração, ao centro da grande válvula cardíaca, o motor motriz humano da vida, aquele que dispara ao sinal da mais simples emoção, aquele que une casais, pais e filhos por uma conexão inimaginável á razão humana, estava com uma mancha, doce mancha no formato de um copo de leite:

– Infarto fulminante. Pode fechar!

Como o sol costurando o céu em seu passar, passou Maurindo a linha e agulha no corpo da mulher. Desta vez não foram as perna que sofreram, nem o estomago que queimou, mas sua face que perdeu a cor.

Fechou o saco novamente em um zipi único, mas o abriu novamente.

Afrouxou os lábios e deitou-os sobre a testa da senhora. Beijou como se fosse a primeira, mas era a última vez. Brianezi berrou ao ver a cena:

– O que você esta fazendo?

Sem alterar um “ai” de seu sofrimento, nem secar as lagrimas com as mãos, ou olhar para a face irritada do especialista:

– Estou me despedindo da minha mãe, Doutor!

De olhar murcho, mas tranquilo, o assistente guardou novamente a mãe de volta á gelada gaveta de número 25.

Robson Di Brito
Enviado por Robson Di Brito em 01/10/2011
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