O espelho

O espelho mostrava: era desengonçada, muito branca, muito magra, parecendo alta para as amigas; o cabelo escorria liso amarelo palha, as sardas pipocavam no rosto claro, o dente da frente tinha uma mancha branca de formato inusitado (“o coração do papai”) que, quando a saúde se ressentia, saltava aos olhos como um luminoso de néon. As pernas finas, os joelhos grossos, o calo no dedo de tanto escrever, as incertezas de contínuas descobertas... Campeã de natação, segundo o irmão: nada de peito e nada de costas. Um desastre total aos dez.

O espelho mudou um pouco e desta vez passou a mostrar mais curvas. A mancha do dente ficou mais suave, as sardas idem. O corpo ganhou massa, o cabelo ganhou cachos, os olhos ganharam paixão, o coração ganhou certezas. E o calo continuava lá, desarmonizando o anular. Não havia preocupação com o futuro ou com as imagens que o espelho mostrava, pois tudo fazia sentido e era claro como o dia. Uma promessa de felicidade aos vinte.

Então o espelho ficou estreito demais para comportar uma silhueta tão recheada de vida. O cabelo, um problema, mas a pele uma seda; a mancha dos dentes visível, mas os seios, maternais - e nos olhos, uma ansiedade só. O futuro era lindo e pulsava, vivo e belo, dentro do ventre, que não podia ficar sem ser observado pelo menos uma vez a cada meia hora. Não era mais uma promessa, era uma certeza: a personificação da felicidade aos trinta.

Mas o espelho ficou baço pelo hálito das dúvidas. A mancha do dente não importava mais ante os primeiro fios brancos que surgiam, imponentes, a mostrar que o calendário tem lá seu ritmo próprio. As curvas continuavam ali, ligeiramente modificadas pela maternidade, mas algo estava diferente: não era o calo do dedo, que seguia firme e forte, mas uma ânsia de viver poucas vezes percebida ou, antes, colocada ao lado para posterior análise. E a hora da análise era agora, aos quarenta.

Não adiantou limpar o espelho, nem com a melhor flanela. Continuava embaçado, talvez pelo suor que evaporava, inesperado, durante os ciclotímicos calores. Os cabelos branquearam de vez, destruídos pela tinta cruel que escondia mas cobrava seu preço ao roubar a antiga maciez. A altura encolheu, a mancha do dente praticamente sumiu (o coração do papai foi reduzido a cinzas) e o calo diminuiu na proporção em que aumentou o uso dos teclados. As curvas ficaram mais brandas, o corpo novamente ganhou massa, o rosto apresentava vincos agora perceptíveis. A pele caía devagar, a cada dia uma novidade. E aos cinquenta todas as certezas, em bando, se foram, como andorinhas a fugir do inverno.

Agora o espelho já pode se quebrar. O retrato será feito de memórias, das muitas memórias que se internalizaram em meio século. Será uma colcha de retalhos mas aquecerá no frio do inverno, pois terá adicionadas a ela sabedoria e paciência. Mesmo porque a aparência externa já não conta, ainda que o calo continue lá a lembrar que desde sempre a caneta se apoiou no dedo errado... deveria ter sido no médio, não no anular.

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Este texto faz parte do Exercício Criativo "Auto Retrato"

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