A montanha gelada e o rio

Não, não é nada, é um velho atlas desbotado e obsoleto que vou jogar fora. Com o Google Earth a gente vê em detalhes os mapas que quiser e até passeia pelas ruas de qualquer cidade do mundo sem sair de casa. Semana passada visitei a cidadezinha de meu avô, à beira do rio, e andei por uma longa alameda de plátanos. Passei ao lado do cemitério, entrei no centro da cidade e vi a igreja numa praça encerrada por quatro ruas que terminavam num largo calçamento.

Coloquei o atlas no lixo pensando, como é que os geógrafos produziam mapas antigamente, sem satélites? Pensei em você estudando geografia e fazendo suas medições no alto da montanha; e imaginei que devia ser assim na época anterior a toda essa tecnologia. Acampando nas alturas, no frio do inverno europeu, no gelo que, ao derreter, formava o rio – coincidentemente, o mesmo rio da cidadezinha de meu avô, que visitei em frente ao computador. Tentei subir virtualmente a montanha, mas não consegui, porque me esqueci do nome do local que você um dia frequentou. Àquela época eu não sabia onde você estava, não havia Google Earth e eu nem sequer imaginava que o rio da cidade do meu avô nascia no alto de uma montanha.

Hoje tudo está diferente. Meu avô já morreu há muito tempo, a cidadezinha deve ter se modificado muito (a que eu visitei na tela certamente não é a mesma da qual ele se despediu para vir fazer a América, dois séculos atrás) e você não faz mais medições na montanha. Tanta coisa aconteceu desde então... nossas vidas se separaram, se juntaram e se separaram novamente. Tenho medo de te perder - mas tenho medo de me perder também. Geograficamente o medo é assim, como altas montanhas que impedem de enxergar além, estando cá embaixo, na planície; é necessário chegar ao cume para ver o horizonte ao longe. Para nós também será necessário galgá-las um dia, eu por uma encosta, você por outra, para que nos reencontremos. Mas entre as escarpas dessa montanha de medo também assusta esse gelo, água sem vida que colocamos entre nós, à espera de um verão que venha aquecê-la e derretê-la para que se transforme em rio - e o rio transforme tudo em sua passagem.

Abro a tela do Google Earth. Vejo tudo de cima, mares, montanhas, rios, planícies... Entro na cidadezinha de meu avô e subo todo o curso de água na esperança de que, remando contra a corrente, volte no tempo e ainda te encontre, tiritando de frio, no alto da montanha gelada, para tentar te aquecer e começar tudo de novo. Desta vez, da forma certa: do começo. Exatamente como o rio, gota a gota, até virar inundação.

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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Geografia do Medo

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