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O COBERTOR CURTO=EC
Eu afanei um caderno e um lápis que um garoto deixou em um banco do jardim.

“Afanou? Então você é um ladrão?”

Ladrão, pinguço, vagabundo... Sou um pária, ou como  dizem por ai, um “Problema Social”.

Mas vocês devem estar se perguntando por que eu roubei  um caderno e um lapis.

Pois bem, eu estou querendo escrever um diário no qual falarei um pouco de mim, das muitas experiências vividas e dos fatos observados nesta minha vida de morador de rua.

Um dia talvez escreva até um livro de memórias, quem sabe? 

Para começar, vou contar o que me aconteceu um dia destes.

Fazia um frio desgraçado e eu não consegui dormir à noite, pois não tinha encontrado jornais suficientes para me cobrir.

Foi então que uma senhora com a filha pequena chegou e me entregou um pacote.

Fiquei tão contente e a menina era tão  linda que tive vontade de beijá-la, mas não me atrevi a tanto, pois a mãe com certeza chamaria a polícia. Se fosse um político, jogador de futebol ou artista de televisão, ela seria capaz de deixar a menina sem lavar o rosto para não tirar o cuspe deles. Mas eu não era nada disso. Era um miserável, sujo, fedorento.

Agradeci o presente. Um lindo cobertor de lã xadrez. Aquela noite eu ia dormir quentinho. Que bom!

Só havia um senão. Eu tenho um metro e noventa e tres de altura e o meu cobertor tinha apenas um e oitenta. Sobravam treze centímetros de mim sem coberta, mas eu dava um jeito nisso.

Encolhi-me como um caracol e consegui me cobrir, mas não aguentei ficar muito tempo na incômoda posição. Tinha que optar, ou cobria as orelhas ou cobria os pés.

E não pude deixar de filosofar:

É como a vida da gente, um dia se tem muito, outro dia se tem pouco, outro, nada. Temos sempre que fazer escolhas e renuncias. Muito mais renuncias do que escolhas. Ter tudo é utopia. Como querer cobrir os pés e a cabeça com um cobertor curto.

Fui alternando as posições até que peguei no sono.

De madrugada acordei tiritando de frio e tive uma desagradável surpresa, meu cobertor tinha sumido. Algum colega o afanara.

Aqui é assim, o que é de um é de todos. Quem não se sujeita a lei da rua acaba brigando e muitas vezes apanhando.

Eu não gosto de briga nem de pancada, prefiro ficar na minha, comendo o que tem e bebendo quando posso.

Comida não é difícil. Tem uma padaria que nos dá todas as manhãs os pães amanhecidos.

Sempre tem mais pedinte do que pão, mas às vezes a gente consegue pegar algum.

Para o almoço temos alguns restaurantes que nos dão as sobras escondido da Vigilância Sanitária.

A noite tem um grupo de religiosas que nos trazem um sopão.

Somos mais bem alimentados do que muita gente boa.

O mais difícil é a cachaça. Essa ninguém nos dá.  Só quando conseguimos algum trocado e podemos comprar. Bebemos menos do que a maioria, mas temos fama de bebuns.

No mais, a nossa vida é muito tranquila. A cidade toda é nossa casa, os bancos do jardim, a nossa cama e a abóbada celeste a nossa cobertura.

Não precisamos ter medo de nada nem de ninguém, pois não temos o que perder.

Assistimos os desfiles, as passeatas, os comícios. Vemos de perto o nascer e o por do sol, sentimos na pele as chuvas, os ventos.

Acompanhamos o desabrochar das flores do jardim e conhecemos os passarinhos que voejam por aqui.

Vemos muita coisa gratificante, mas também muita coisa feia praticada por gente que se diz de bem, como lixo jogado na rua, animais abandonados, brigas.

Testemunhamos  muitos crimes, assaltos, assassinatos, mas nunca somos chamados para depor, contar o que vimos.

Como somos míseros moradores de rua pensam que não vemos nada, não sentimos nada, esquecem que somos seres humanos.

Não existem seres sub-humanos, sabia? Somos todos “imagem e semelhança de Deus”. Foi Jesus que disse.

De vez em quando a Assistência Social, Policia ou sei lá o quê nos prende, obriga a tomar banho, nos dá roupas limpas, diz que precisamos trabalhar, mas não conseguem nos arranjar trabalho, não sabem o que fazer conosco e acabam nos devolvendo à natureza, ou seja, às ruas.

Ei! Olhe quem vem ali. Um companheiro com meu cobertor enrolado embaixo do braço.

Ele que me aguarde que a noite quando ele estiver dormindo eu vou lá e afano dele. Aqui é assim, olho por olho, dente por dente, que nem no tempo de Moisés.

Bem, pessoal, por hoje é só. Voltarei em breve com a continuação do Diário que estou escrevendo no caderno roubado (que coisa feia!).

Muito obrigado pela paciência de me ler.

Fui!

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Este texto pertence ao Desafio “COBERTOR CURTO”
Vejam os outros textos
http://encantodasletras.50webs.com/cobertorcurto.htm
Maith
Enviado por Maith em 01/10/2012
Reeditado em 03/03/2015
Código do texto: T3910220
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