A MADRE VOADORA II (EC) - conto

Fireland era uma dessas pacatas cidadezinhas de interior, perdidas no tempo. Cheia de tradições e histórias passadas no boca a boca, de pai para filho. Histórias incríveis, de arrepiarem-se cabelos, de esconder-se sob o cobertor. Sombras transformavam-se em seres sobrenaturais. Uma coisa é certa e indiscutível, ao menos para os mais antigos. Os primeiros seres extraterrenos a visitarem a Terra aterrissaram lá. As marcas já foram apagadas pelo Grande Incêndio, mas todos garantem seja verdade.

Conta-se que num tempo, nem tão distante, aconteceu este fato.

A igreja e o Convento anexo, hoje locais turísticos, estão lá, para comprovar o mistério aos incrédulos.

Numa noite de Lua Grande, coincidentemente Sexta-Feira, alguém jurou que viu pelos olhos que a terra havia de comer. Uma das freiras saíra de uma janela do Convento voando num cavalo na direção da Lua Grande. Muitos outros, em muitas outras Luas Grandes, juraram ter visto também. E entre mais coisas, juravam que o Cavalo resfolegava fogo.

Até os mais sábios puseram-se assustados. Já sabiam e estavam acostumados com o fogo das ventas da Mula-Sem-Cabeça, presença costumeira no povoado, mas um cavalo montado por uma freira...

Jamais...

Fosse uma pecadora, até poderia ser, mas uma freira...

Quem viu, jurava – era freira... Estava com roupa comprida... Uma batina.

Nada há que não piore.

Numa Lua Grande do dia Treze, um jurou que viu a cena. Assustadíssimo, relatou estava a freira sem roupa.

Coisa do Demo... Parte com o Cão... Queimem as Freiras... Ardam no Inferno... Bradavam alguns, com olhar em brasa de ódio e medo, incendiando os demais.

Felizmente, para as freiras, de há muito passara-se a época da Inquisição. Mas para quem acredita em Mula-Sem-Cabeça, por que não a existência de Licantropos. Juntar bruxarias é um passo. Ou uma palavra juramentada pelo sinal da cruz nos lábios.

Raciocinem comigo, diziam alguns ao argumentarem seus profundos conhecimentos de lógica aristotélica: “Se em Noites de Lua Grande aparecem Licantropos... Se a Freira fora vista voando nua... Logo, a Freira é mulher do Licantropo”. E mais, foram encontrar-se no céu e estão prestes a gerar mais uma criatura do mal.

A tese alastrou-se, igual queimada de mato seco, pelas bocas e ouvidos.

Óbvia e clara como as sendas iluminadas pela luz da Lua Grande.

Embora o Padre tentasse ignorar a situação e orientasse a população em suas homilias é certo, que pelo sim, pelo não, todo cuidado era pouco...

Tríduos, novenas e trezenas... Confissões, indulgências, promessas de não mais pecar...

Nada demais seguir as orientações de ancestrais. Simpatias profanas como alho à entrada das portas, arruda na orelha e outras menos críveis eram recomendadas também.

O importante e manter longe de suas casas a Madre de Fogo.

Sair de casa em Noite de Lua Grande, nem pensar. A Festa da Grande Fogueira foi cancelada num ano. O Dia de Santo Antonio, para desespero das casadouras, seria justamente na Sexta-Feira de Lua Grande. Nunca uma nudez foi tão repudiada pelo fogo casamenteiro.

Nada além de mais uma lenda, se com o passar de algumas Luas Grandes, um problema não surgisse.

Fireland, sempre pródiga na vocação de virgens pelo solidéu, estava mudando seu perfil. Muitos pais não mais admitiam filhas suas sob o risco de saírem nuas pelas madrugadas. De outra parte, algumas freiras abandonaram o juramento e voltaram para suas famílias. Mesmo sob a suspeição de ser a freira dos passeios noturnos.

Visitando Fireland, uma preocupação abateu-se ao Bispo, cioso da necessidade de boas almas para a lida diária do Convento.

Chamou Padre Chico, o Pároco, e Madre Joana, a Superiora do Convento, com urgência à Sede da Diocese para explicar a inexplicável situação.

Após intensas e bem fundamentadas justificativas, quanto a ignorância popular, prestadas ao Bispo, este decidiu avocar para si a solução da questão.

Quando não se têm culpados, qualquer um serve para tal.

Sob protestos, mas em minoria, a culpa recairia sobre Madre Joana.

Bem que ela tentou passar para outra o mister da responsabilidade, mas o Bispo foi inarredável e convincente: “Ao admitir a culpa, aceitar o perdão e remitir-se do pecado, uma pessoa respeitável e poderosa como a senhora será exemplo a ser seguido. Um paradigma para outras ovelhas que estiverem sob o manto do pecado retornem ao rebanho”.

“Quem comunicará à população?” Ousou indagar Padre Chico.

O Bispo encheu de razão: “Eu, ora! Tenho jurisdição sobre todos fiéis desta Diocese.”

“Qual será o argumento para mim?” Atemorizou-se a calada Joana.

Domingo... Na Praça da Igreja... Todos à Grande Missa, com a presença do Grande Bispo... Apelavam os cartazes .

Como lhe cabia, o Sacristão garantiu à esposa que, mediante guarda de segredo, contaria o escutado pelas paredes da Sacristia: “Seria revelado o segredo da Freira Voadora”...

Rastilho em mato seco, novamente...

A esposa contou à irmã, esta à sogra e assim, com cada um do povo pedindo guarda de segredo ao vizinho, em questão de horas todos de Fireland sabiam, sigilosamente, o motivo da presença do Bispo.

Missa terminada, empertigou-se o Bispo, com seu manto de cor ígnea, no púlpito improvisado no Coreto da Praça. Silêncio dos fiéis e volume máximo na caixa de som... Voz, entre embargada e convincente, ouviu-se:

“Amados fiéis! A Igreja não deve e não pode esconder fatos... Vim para desnudar o caso da Freira Voadora, como vocês chamaram esta ocorrência inédita... Não apontem dedos, nem atirem pedras... Lembrem-se do perdão a Madalena... Tranqüilizem-se... A Freira Voadora não mais aparecerá em Fireland... Acalmem-se!... Eu mesmo já a exorcizei... Afastei-lhe o espírito perturbador... Madre Joana partirá comigo, para um retiro espiritual e, talvez, retorne breve para esta Paróquia... É o que tenho a dizer... Sejam todos abençoados!...”

Passado o burburinho característico dessas ocasiões, vencidas algumas Sextas-Feiras de Lua Grande seguintes, a Freira Voadora foi caindo no esquecimento, tornando-se apenas mais uma lenda, dessas que permeiam a crendice popular.

Padre Chico morreu velhinho, sempre jurando ter visto o exorcismo, mas correm boatos, tudo não tenha passado de uma grande farsa e Madre Joana nunca deixara de ser a Freira Voadora. Dizem, até, que o Bispo era o Licantropo disfarçado. Teriam mesmo indo embora de Fireland, mas um do povo noticiou, que pessoas confiáveis e juramentadas de Tatá-Guassu, vilarejo não muito distante, juram ser pura verdade...

Na mesma época da partida de Madre Joana, por lá surgiu uma mulher de roupa comprida, montada num Cavalo de Fogo, nas noites de Lua Grande...

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Este texto faz parte do Exercício Criativo - O Exorcismo na Madre..

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http://encantodasletras.50webs.oexorcismodamadre.htm

Pedro Galuchi
Enviado por Pedro Galuchi em 29/04/2013
Código do texto: T4264907
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