JOGA O PICOLÉ FORA! NUM JOGO!

Série: Causos do Interior

Para a bicicleta andar mais veloz e nos cansar menos, pedalávamos a quatro pés. O primo Geraldo apertava os pés no canto do pedal e eu sentado na garupa juntava meus pés no pedal aumentando muito a propulsão. Pés pequenos de lá seus 12 anos.

A tragédia começou quando subimos a Rua Dois de Agosto e dobramos a esquina do Posto de Saúde, indo em direção a Manteigueira, onde havia uma descida bem inclinada. A bicicleta começou a disparar morro abaixo.

Domingo, depois do almoço, decidimos ir à cachoeira do Hermes Sander. Nunca entendi esse nome pomposo no meio de tanto Silva, Lopes, Souza, Pereira... na pequena Itambacuri.

Descemos chateados do sobrado onde morava tia Mira, quando o obsessivo do tio Wilde não deixou os primos irem com a gente à cachoeira: era perigoso, podiam gripar... Compramos dois picolés (as moedas para um picolé eram difíceis, raras) de coco e leite, que tinha mais água que leite, no bar Night and Day e pedalando a magrela rumamos para a cachoeira, distante sei lá, uns cinco quilômetros.

Em vez de ir pela estrada de Sivico, que tinha a tentação de ir para a cachoeira do mesmo nome, mais perto, decidimos subir pelo Morro dos Angicos. Subida forte, porém mais perto.

Como antevi a queda comecei a gritar da garupa para o primo conduzindo o guidão com uma mão só e a outra no picolé:

- JOGA O PICOLÉ FORA!

E Geraldo enfático:

- NUM JOGO!

Naqueles tempos grana para um picolé ou outras coisinhas era rara. Como jogar fora um picolé? Impossível! Ganhar uma garrafinha de guaraná Antártica e algumas bolachas somente quando estivesse doente de cama. E aí era bom adoecer...

A cachoeira de Hermes Sander era diferente de todas as outras. Despencava montanha abaixo por aí uns 600 metros formando véu de noiva, lindas quedas, poções e alguns perigosos precipícios. Noutra época, já rapaz, o programa era terminar a farra da noite nesta cachoeira. Levávamos cachaça, farinha e uma manta de carne de sol. Encabulava-me aquele tanto de carne se todo mundo era duro, sem dinheiro. Depois descobri que eram roubadas dos açougues. Tiravam as telhas, desciam um anzol em forte linha de pesca e “fisgavam” uma bela manta de carne de sol dois pêlos, aquela que tem carne de um lado e gordura do outro. A noite findava com a gente dormindo na pura pedra da cachoeira. O mato era macio mais tinha muita cobra. Quando o sol rompia o banho compensava a caminhada e as dores lombares da pedra dura e fria.

E quanto mais a bicicleta tomava velocidade eu gritava já aos berros:

- JOGA O PICOLÉ FORA!

-NUM JOGO!

Acho que estava bem implícito. Jogando o picolé fora as duas mãos iriam para o quidão e podia-se usar o freio traseiro evitando-se a queda.

Já do meio do morro pra frente arrisquei olhar de lado. Havia uma pequena ponte de madeira, sem guarda mão, sobre o Córrego do Engenho, cheia de buracos de chuva na terra sobre a mesma. Tinha uma pequena passagem sem buraco, de uns 40 centímetros na beiradinha da ponte. Com sorte passaríamos ali sem cair.

Mas quando o diabo anda solto viver fica muito perigoso. Né que vinha uma donzela toda emperiquitada no oi da gameleira tomando o rumo daquela possível passagem!

Lá pros onze anos sonhava com uma bicicleta caloy vermelha vista em uma loja em Teófilo Otoni. Consultei meu pai. Se eu vender aquela vaca que está na Fazenda de tio Chico dava pra comprar a bicicleta. A vaca, ainda novilha foi um presente do padrinho Milton. Não reclamei para o meu pai, mas pensei: no meio de tanta vaca vai morrer logo bezerro da minha pela segunda vez? Tio Chico dava o pasto, não podia fazer mal juízo não...

Tentei a última vez, no desespero:

- JOGA O PICOLÉ FORA!

Entrando nos buracos da ponte naquela velocidade a queda foi inevitável. Da garupa cai em cima de Geraldo e da bicicleta. Notei que dois dedos do primo estavam apontando prum rumo esquisito. Minhas costelas estavam raladas doendo muito.

No hospital confirmou-se que os dedos estavam quebrados e na falta de Raios-X a enfermeira opinou que “parecia” que minhas costelas não estavam quebradas não.

Mas lá no cenário, no meio de tanta terra e poeira o primo achou o picolé todo sujo de terra e conformou-se desolado:

Agora não dá mais pra chupar não!

ghiaroni rios
Enviado por ghiaroni rios em 03/09/2013
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