A Lenda do homem que tinha estrelas nos olhos

Nas margens do Rio Bengo existe uma aldeia cuja memória se perdeu no tempo. Nessa aldeia vive um homem velho, muito velho, que conta uma lenda antiga. Esse homem só conhece essa lenda, nenhuma outra e conta-a vezes sem conta para quem a quiser ouvir, mas sempre que a conta, diz quem a ouve, que soa como se libertasse um segredo. Sempre a mesma história, mas nunca igual. Este homem aceita falar de um homem extraordinário que nasceu aqui, nas terras enormes de Angola. Este homem velho junta os homens jovens ao redor da fogueira e conta:

-Noutro tempo, aqui, na margem deste rio, nasceu uma criança com estrelas nos olhos. A mãe, ao dar à luz, percebeu que essa criança não era só dela, que era de todos e que aquela aldeia era pequena demais para quem nasce com estrelas nos olhos. -Estrelas nos olhos, mais velho?

-Sim, estrelas, como as que vês no céu. -O que fez esse homem para que fosse extraordinário, para que fosse inesquecível? -Ele foi uma criança igual às outras. Brincava como os outros, pescava e caçava como as outras crianças, mas tinha estrelas nos olhos. Um dia, pela manhã, ele acordou e foi embora, despediu-se brevemente e saiu da aldeia, de madrugada, sem olhar para trás. Conta-se que foi à cidade grande, aquela que liga Angola ao mundo. Dizem que foi lá que aprendeu a guardar o que pensava. Aprendeu que as palavras se podem guardar em papel para serem usadas depois. Um dia, disseram-lhe que esse poder tão grande se chamava ler e escrever. Assim, percebendo isto, começou a procurar tudo o que outras pessoas guardavam em papel. Nessa cidade descobriu que conseguia ler também o que ele e as outras pessoas guardavam escrito nos corações e, com esse poder enorme, decidiu partir. Partiu para longe, atravessou o mar. Conta-se que visitou uma terra que as pessoas falavam ao contrário e que, apesar de não terem estrelas nos olhos, tinham o sol no cabelo. Foi a uma cidade feita de luz, uma outra onde os homens prendiam a memória dos antepassados em estátuas de pedra. Esteve em cidades mágicas, escondidas em 7 colinas. Conheceu professores que abriram a porta da ciência e aprendeu línguas que disseram que estavam mortas. Foram muitos os anos a conhecer o mundo. As notícias dele eram raras, mas sempre chegavam notícias de novas aventuras, novos destinos. Finalmente, num mês de cacimbo, recebemos notícia de que ele se tinha revoltado. Contam que alguém encontrou nele uma cor. Gritaram que, naquelas terras distantes, ele não era o homem com estrelas nos olhos porque tinha uma cor diferente. Disseram-lhe que não era o viajante, aquele que tinha o horizonte no coração, não era. Ele era uma cor e que nunca o mundo seria dele, nem a sua própria terra. Nesse dia, despertou com mais mil estrelas nos olhos e decidiu revoltar-se, decidiu guardar as suas palavras em mais papel e lançar as suas ideias em gritos de poesia e quanto mais escrevia mais estrelas lhe nasciam nos olhos. -O que é feito dele, mais velho? -As estrelas já se soltaram dos seus olhos. Voaram para o céu em harmonia, num dia de Setembro, numa espiral livre. Conta-se que as estrelas estão agora nos olhos de todos os jovens angolanos e, segundo a lenda, aí ficarão para sempre.

Victor Amorim Guerra

Manuel Correia
Enviado por Manuel Correia em 24/04/2014
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