Uma mulher realizada

Noite fria, coisa rara em minha vida. O calor sempre esteve presente na maior parte de minhas lembranças. Mas hoje sinto frio. O ar gelado da noite penetra nas venezianas e minha sala se transforma em uma geladeira. Sala imensa, pé direito alto. Ah, a casa materna, da infância, dos folguedos, tantas lembranças guardadas nela. Já morei em tantos lugares, jurei nunca mais pisar aqui, nem para ser velada, eu dizia sempre. Mas voltei e foi decisão minha. Sempre segui minhas intuições. Algo me dizia que acontecimentos marcantes me aguardariam aqui. A maturidade, a tranquilidade, a paz, depois de muitas dúvidas e crises, foi aqui que encontrei. Hoje estou madura e sei exatamente o que preciso e quero para o resto de minha vida: a paz interior que encontrei após tantos conflitos íntimos e angústias. Hoje somente preciso de meus filhos, meu marido, meus livros, a fala mansa de Ingmar Bergman nos documentários, música e silêncio. Os pássaros cantando, minhas cadelinhas latindo, o ótimo relacionamento que tenho com a idade, a velhice que já se anuncia e a morte que um dia me levará. Meu corpo não me preocupa, meus cabelos estão sempre muito curtos, as vestimentas folgadas e confortáveis para ficar em casa, as roupas negras e saltos altos para as raras vezes em que me aventuro a sair.

Ah, a liberdade que a idade nos dá! Após os cinquenta anos, nada mais importa. Não quero pele esticada, cabelos pintados, nada artificial. Quero ser eu mesma, com as marcas da vida, as rugas de expressão, o grisalho dos cabelos, as mãos refletindo o tempo que já se passou. Não quero outro homem em minha vida, exceto o meu marido e meu filho. Ou, se eu tiver sorte, algum neto que eu ainda possa ter. Quero o “silêncio das línguas cansadas”. Se todos pudessem estar em harmonia com o tempo, não haveria a angústia de não ter barriga, rugas, cabelos brancos e tantas outras coisas que a vida faz ao corpo de todos nós. Eu sempre me relacionei bem com o tempo, pois há um para cada coisa.

Fui criança arteira, matreira, sapeca, moleca ao brincar com os primos, menininha ao lidar com minhas bonecas, meus vestidinhos lindos e caros, meus sapatinhos de verniz, minhas inúmeras bolsinhas (vício que tenho até hoje), as meinhas e camisetinhas brancas de seda para a garotinha alérgica.

A adolescência eu vivi intensamente; drogas, namorados, ausência nas salas de aula, roupas que mostravam a leveza do descomprometimento juvenil, os biquínis que pouco cobriam o corpo excessivamente magro da jovem que amava as aventuras, ria muito e vivia intensamente a vida.

A juventude universitária em uma cidade onde não há lugar para amenidades e vínculos fortes, onde não me sentia bem. Ser jovem é poder jogar tudo para o alto sem ter que dar muitas explicações. Por que largou a faculdade e voltou? Porque quero viver, porque sim, porque tive vontade. Quando essas palavras saem de uma boca que não é cerceada pelos demais, não há censura, críticas e nem repreensões, apenas concordância.

Muitos namorados, nenhum sentimento. Muita diversão, nenhum compromisso. Muitas leituras e reflexão. A certeza de que nunca seria mãe, esposa e, muito menos, dona de casa. Um ideal de liberdade que sempre foi a tônica de minha vida e que hoje exerço ao optar pelo isolamento. Ser livre não é ser solta na vida, mas poder decidir o que quer fazer dela. Hoje eu quero isolamento para ler os livros que ainda desejo, antes de morrer. E me recuso a conhecer mais pessoas, pois essas são muito problemáticas com suas lutas por uma juventude que se esvai, por terem que seguir modas e tendências, pelo apego exagerado aos bens materiais e ao que os outros vão pensar. Tudo isso não faz parte de minha vida, de meu cotidiano. Hoje eu quero aproveitar o resto de minha vida entre meus livros. Se a morte me pegar, eu terei terminado de viver como desejava. E não quero, caso a doença me pegue, ser tratada. Eu sei que tenho o direito de me negar a ser socorrida, a ser hospitalizada, e exerço esse meu direito com galhardia e até um pouco de autoritarismo. A vida é minha e eu decido se quero viver como uma inválida ou morrer rapidamente.

Os cigarros causam câncer? Mas os alimentos também fazem isso com nosso organismo, através dos agrotóxicos, dos hormônios, dos transgênicos, etc. Fumo por puro prazer e sinto que o cigarro é meu parceiro tanto na hora do lazer como na hora de executar tarefas chatas, ou aturar pessoas tediosas. Eu tenho o direito de fumar até o último minuto de minha vida e o farei.

Ah, mas como é gostoso voltar, mentalmente, ao passado e me recordar da ânsia que o jovem tem pelo sexo, cuja importância vai diminuindo com o tempo. Ou com o desejo de viver a mil, que o tempo mostra que agora é hora de viver a dez, no compasso de espera, aproveitando de forma salutar a curva descendente da vida.

Se tive problemas, angústias, depressões, desilusões? Claro, mas ficaram para trás. Não há mais lugar para nada disso em minha vida atual. Afinal, ansiedade pelo quê? Angústia por qual motivo? Depressão em final de vida? Tudo isso faz parte dos que ainda querem viver a mil, mesmo quando as pernas não mais correspondem à corrida contra o tempo. Aceitemos o passar do tempo..

É o meu momento de me deliciar com a voz e as ideias do Bergman, os textos do Capote, a História do mundo, as crônicas, os contos, as longas narrativas ficcionais; as músicas do Cole Porter, o sax do Miles Davis, a MPB no que há de melhor, o samba de raiz, os clássicos barrocos, as ragas e os mantras indianos, a flauta andina, o rock dos anos setenta da década passada, a música tibetana; os filmes do Bergman, Woody Allen, Scorcese, Win Wenders e os de conteúdo histórico, sem jamais desprezar os brasileiros. Tantos são os filmes de nosso Brasil que possuem uma qualidade impecável, além dos documentários. Lamento a morte do Glauber assistindo a Labirintos do Brasil; admiro os filmes do cineasta, falecido recentemente, Eduardo Coutinho; o documentário sobre o maravilhoso Sergio Buarque de Holanda; além dos últimos Dvds onde Chico Buarque fala sobre tudo, além de cantar maravilhosamente. Sim, ainda há muito o que fazer e conhecer neste mundo, sem que precisemos necessariamente sair de casa ou conviver com quem quer que seja. Claro que amo os pouquíssimos amigos que tenho, mas já atingi minha cota de amizade sincera. Agora somos eu e as coisas que amo fazer. E sou feliz assim!

Olho para trás e vejo aquela menina ansiosa, tensa, angustiada, desejando viver tudo, conhecer todos, experimentar os perigos e desafios da vida, e percebo que foi com ela que aprendi o caminho da serenidade.

Meu lado mulher deu lugar definitivamente ao meu lado intelectual, que nunca deixei de cultivar, mesmo nos momentos mais conflituosos de minha juventude.

Já pesquisei vários temas, desde psicologia até existencialismo; desde a literatura até os maiores autores, além de muitas outras pesquisas. E isso foi o que sempre me deu prazer. O regalo de minha vida foi esse. Por isso decidi viver meus últimos anos me dedicando ao que realmente me realiza.

Me sinto vitoriosa porque passei para meus filhos os meus valores e os vejo se deliciarem com todas as coisas que enumerei como sendo as paixões de minha vida. Tenho orgulho de vê-los mergulhados em leituras, pesquisas, filmes e boa música. São éticos, decentes e honestos. Mas ainda não consegui (e nem me cabe fazer isso) libertá-los da angústia e vaidade juvenis. Isso só o tempo e as experiências, amargas ou não, da vida podem lhes dar.

Ri, sofri, chorei, tentei me matar, gostei, odiei, bebi, vivi, amei minha família; cuidei e enterrei meus amados, tanto os vivos ingratos e cruéis quanto os realmente mortos. Hoje tenho a consciência tranquila do dever cumprido, do muito trabalho que tudo isso me deu, das muitas cicatrizes que carrego. Agora, totalmente em paz, eu não tenho sexo, sou somente um ser humano que adquiriu, a duras penas, o direito de escolher como envelhecer.

Campos dos Goytacazes, 13 de julho de 2014 – 02:02 horas

Hoje Carla faria aniversário. Onde você estiver, querida, quero que saiba que eu finalmente estou bem, que superei tudo de ruim que passamos juntas. Hoje acredito que nós duas estamos em paz e com a certeza de que cumprimos o que nos foi atribuído nessa vida. Saudades eternas. Aqui coloco a frase que sempre dissemos uma à outra: “A amizade é um amor que nunca morre”, Mario Quintana

Emar
Enviado por Emar em 13/07/2014
Reeditado em 22/08/2014
Código do texto: T4880058
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