NINA E PEPE

Tenho impressão de que, nas encarnações anteriores, deves ter sido uma bruxa medieval. Com certeza, viverias numa cidadezinha do interior da França, próximo à fronteira com a Itália, cultuando o sol, a lua, as estrelas, aproximadamente no começo do século XV.

Tinhas este mesmo corpanzil d’agora, o mesmo encanto sedutor, a mesma magia. Aliás, magia era o que não lhe faltava. Fazias das mais variadas poções mágicas, em busca da longevidade juvenil, da imortalidade e, até mesmo, do amor, do amor perdido. As bruxas também amam...

Mas, eras uma bruxa. E como tal, muito mal vista pela população. Tanto que resolvestes morar no campo, mais próxima da natureza e em menos contato com a sociedade cristã preconceituosa, que via um demônio em cada manifestação espontânea e um santo em cada gesto da Igreja. A Igreja que te havia separado de alguém muito especial.

Na tua casa, uma cama feita de madeira. Penas de animais e uma pele de urso como colchão. Aprenderas com tua falecida mãe o ofício da fabricação de tecidos de lã, com os quais, após roubares lãs das ovelhas, fazias tuas roupas e cobertores.

Acordavas todo dia, às cinco e meia da manhã, para ir buscar lenha no bosque, a fim de que o fogo pudesse ser feito. Não tinhas companhia nenhuma a não ser dos animais que lhe enfeitavam o dia com cores, gestos e músicas.

Nos dias frios, trazias a lenha e, numa espécie de grande vasilha, aquecias a água com a qual tomavas banho. Quem visse a cena, fatalmente acreditaria que eras uma bruxa, dado o total desprendimento que tinhas: ficavas nua dentro de casa e no alpendre, mostrando toda a exuberância natural, a ponto de teus seios convidarem os beijos do beija-flor. Quando estavas tomando banho, cantavas belas canções em celta antigo, com melodia tal que os pássaros ficavam na janela, na mesa e, os mais atrevidos, nas bases da vasilha, a te ver tomar banho, nua, sedutora.

Mas, eras uma bruxa. E como tal, ninguém se atrevia a chegar perto, temendo alguns dos teus feitiços. Lenda ou não, uma coisa era certa: teu maior feitiço era a beleza. As mulheres te odiavam, os homens te desejavam, apesar do medo. Mesmo assim, nenhum se atrevia a chegar tão perto. Somente Nancy, a doce Nancy, te visitava vez por outra.

A sociedade era hipócrita. Viviam todos ao redor de um mosteiro, mendigando as rezas e caridades dos monges, uma plêiade de enrustidos, que trocavam comida por serviços sexuais dos camponeses. Tudo que a igreja ali residida dizia tornava-se lei. E você se tornou uma “bruxa” pela imposição da igreja.

Eis a história:

Hoje, você conta com vinte e poucos anos. Mas, na sua infância, vivias feliz ao lado da mãe, bonita como você, e do pai. Infelizmente, depois, teu pai morrera em combate, na Guerra dos Cem Anos contra a Inglaterra. Tinhas onze anos. Teu único consolo era aquele menininho com quem brincavas. Vocês combinavam até mesmo de se casarem um dia. Eram diversos planos, tais quais são feitos pelas crianças.

Mas, o tempo passou e uma fatalidade pôs fim às suas brincadeiras: o abade do mosteiro local ficou adoentado. Era a peste negra, o grande algoz medieval. Todos choravam seus defuntos, pois em toda casa havia pelo menos um, mas ninguém desejava a morte deste homem. Era um “homem bom”. Fazia doações de esmolas para todos os pedintes e esfomeados da cidade, em síntese, toda a população... A Igreja tinha disto: em lugar de dividir a terra com os camponeses, preferia manter-lhes amarrados pela corda da caridade. Assim, o seu poder não seria dissipado.

O “santo abade” estava doente. E agora?

Filas e filas se faziam todos os momentos defronte do mosteiro, para fazer orações pelo pobre coitado. Só podia ser o diabo que estava solto pelo mundo para causar tantas desventuras. Todos rezavam aos céus, pedindo pela vida do santo homem. Alguém foi mais ousado: ofereceu o filho como promessa à Igreja se o superior do mosteiro ficasse vivo. O menino seria padre, por vontade da família.

E, por ironia do destino, assim se fez. O monge ficou curado, estava vivo. Todos estavam contentes, sorridentes, dando glórias aos céus. Não mais passariam fome.

Mas o futuro do menino (o menino era aquele com quem brincavas...) tinha sido desviado do seu desejo: o garoto tinha que ir para o mosteiro. Quando soube da notícia, ficou desesperado. Não aceitava que ninguém guiasse o seu destino. Iam separa-lo de sua bela Gianina. Um já se havia prometido ao outro, não podiam separa-los. Mas, assim queriam. Como são cruéis estas coisas de tradição...

Giuseppe contava catorze anos. Pensava em viver com Gianina dali há três. E o que fazer, ante tal decisão de sua família? A garota estava chocada, transtornada. Não aceitava a realidade. Até mesmo sua mãe era a favor da promessa feita à Igreja. A Igreja “era” a serva de Deus na Terra: contrariar a Igreja era o mesmo que contrariar Deus...

Somente um no outro encontravam apoio.

Planejaram fugir. Combinaram para o amanhecer do dia seguinte. Pepe roubaria um cavalo do estábulo do “podestá” (magistrado que cuidava da administração da aldeia) e pegaria Gianina nos primeiros fios de cabelo do sol da manhã. Partiriam juntos para a Ibéria. Ouviram dizer que por lá estavam começando a navegar o grande mar Oceano e os dois eram ávidos por aventura. O principal motivo da fuga, contudo, era o de não se separarem.

Manhã do dia seguinte. Roubo do cavalo. Galope sutil para não chamar a atenção.

Como combinado, Gianina, a Nina como ele a chamava, estava pronta, na porta, com um sorriso enorme e com um medo enorme também. Ela sabia o que representava aquilo: desviar um homem da Igreja era arranjar encrenca para o resto da vida. Ou, até mesmo, a morte...

Beijaram-se ardentemente na boca. O frio e o beijo arrepiavam os mamilos de Nina, que, apesar de jovem, já tinha os encantos de mulher. Com o abraço forte, Pepe sentiu aquele corpo quente como nunca e percebeu a virilidade que lhe cabia enquanto homem. Nunca havia se sentido assim. Talvez esta cena os tenha tornado adultos, algo como um espontâneo rito de passagem.

Partiram. Agora, o galope era rasante. Precisavam percorrer o máximo de distância enquanto não percebessem o que havia acontecido. Seriam dias e dias de viagem. Levavam um pouco de pão de trigo, algumas frutas e pedaços de carne seca para a viagem. Não tinham dinheiro nenhum. Como agasalho, uma pele de urso.

Aproximadamente pelas seis e meia da manhã, todos perceberam a falta de ambos, cada um em sua residência. Foi aquele alvoroço. Prontamente entenderam o que tinha ocorrido, principalmente quando deram por falta do cavalo. Agora era fácil. Bastava seguir a pista dos cascos e apressar o passo.

Juntaram uma multidão. Igreja, camponeses, magistrado e as duas famílias partiram em busca dos dois fugitivos. A mãe de Gianina ficou preocupada. Temia pelo destino da filha. Não costumam perdoar mulheres que tentam tirar homens do caminho de Deus. Mas, ela era apenas uma garota muito jovem.

E a sorte não estava do lado de Nina e Pepe: seu cavalo, com o galopar acelerado, machucou a pata dianteira, tendo que ser abandonado à própria sorte. Os dois não tinham nem como sacrificar o cavalo, que passaria a sofrer até que alguém tivesse pena e o matasse. Seguiriam, então, o restante do trajeto a pé.

Estava mais difícil. As trilhas eram complicadas e o desgaste tornaria a viagem mais dolorosa. A falta de costume nos dois de fazer grandes jornadas, somada ao medo de serem pegos, causava um sinistro presságio em suas mentes: o que ocorreria com um e com outro se fossem encontrados? Como ela passaria a ser vista em sua cidade? Como ele seria aceito pela santa Igreja?

O dia inteiro de viagem foi prosseguido, mas, a determinado tempo, foi necessário que parassem para descansar. Era fim de tarde. Escolheram a acolhida de uma enorme árvore, local onde dormiriam. Decidiram não fazer fogo, para não chamar a atenção de ninguém. Mesmo assim, o pior aconteceu. Adormecidos de tanto cansaço, não perceberam a chegada do grupo caçador. Foram acordados com gritos e atos de violência. Ela foi agarrada e esbofeteada pela mãe, além dos insultos de todos. Ele foi chicoteado, já que era mais velho, e foi cuspido pelo magistrado. Poderia ir preso, se não fosse as mãos da Igreja.

Amarrados, os dois foram obrigados a voltar caminhando para casa, enquanto os outros voltavam a cavalo. Vez por outra, um dos dois caia no chão e era arrastado pelo cavalo, causando diversos ferimentos pelo corpo.

Choravam o caminho inteiro, ao que eram combatidos com gritos e promessas de punições. Era muito terrorismo para um casal tão novo.

Aproximadamente, quatro da madrugada. chegaram à cidade. A vilazinha estava em polvorosa: todos queriam ver o “renegado cristão” e a “meretriz satânica” que o tentou desviar do caminho. Alguns gritavam por fogueira, outros por forca, outros ainda pelo apedrejamento. Agora, a mãe implorava pela vida da filha. Ao menino, ninguém faria mal: era um ofertado à Igreja.

Decidiram, então, manda-lo para outro convento, em Clermont. Com ela, nada podiam fazer de punição. Por sorte sua, sua menstruação veio dali a quatro meses. Se ela já tivesse iniciado o ciclo menstrual naquele período, seria considerada adulta e poderia sofrer punições, chegando até mesmo à morte.

Mas, a maior punição já havia sido decretada: ambos estariam separados. Já no dia seguinte ele seria encaminhado para o novo mosteiro. Não daria nem tempo de despedidas. A última lembrança de um para o outro foi o olhar cruzado, as lágrimas, o rosto contorcido em dor. Intimamente eles, sem saberem, se prometeram um ao outro eternamente. Ele, mesmo naquele momento, planejou ir para o mosteiro e de lá fugir um dia, em busca do seu amor.

Passou-se o dia. A cidade, em burburinho, não tinha outro assunto. Como é de se esperar, ela, a Nina, ficou com má fama. Desviar um homem da igreja é coisa de bruxa, de pessoa que está possuída pelo demônio. Mesmo sem punição, a própria população a condenou a ser uma excluída. Todos lhe riam, todos lhe cuspiam, todos lhe xingavam.

O último contato entre os dois foi através de uma flor: Pepe chamou sua irmã, de apenas seis anos, a pequena Nancy, e lhe fez o seguinte pedido:

- Nancy! Nancy

- Oi, Pepe...

- Preciso de um favor seu.

- Você vai embora?

- Infelizmente estão me obrigando a fazer isto.

- E você não vai casar com Nina?

- Não, pelo menos agora.

- E quem vai casar com Nina?

- Ninguém, eu espero que ninguém.

- E quem vai casar com você?

- Eu não posso me casar. Estão me obrigando a ser padre.

- E com quem ela vai ficar?

- Não sei, Nancy, não sei. Mas, preciso de um favor seu.

- Qual é o favor?

- Preste bem atenção: você vai levar esta flor vermelha para Nina. Diga-lhe que

fui eu que a mandei. Diga que ela guarde esta flor e enquanto ela gostar de mim, que a guarde com todo coração. Eu voltarei para busca-la, um dia. Esta flor é o sinal de nosso amor. Se ela deixar de gostar de mim, pode jogar a flor. Mas, se continuar a gostar, guarde-a como o que há de mais sagrado entre nós dois, mesmo que a flor vá murchando e vire um mísero punhado de pétalas secas. E eu prometo vir busca-la. Não esqueça de dizer isto, Nancy.

- Tudo bem. Pode deixar. E você vai voltar?

- Claro que vou.

- Quando?

- Não sei. O mais rápido que eu puder.

- E eu posso dizer a papai e a mamãe?

- Não, Nancy, não. Você não vai dizer isto a ninguém, ta? Posso lhe pedir outra

coisa, Nancy?

- Peça, irmãozinho.

- Você cuida da Nina para mim, enquanto eu estiver fora?

- Cuido. Pode deixar que eu vou dar banho nela, coloca-la no colo, fazer trancinhas no seu cabelo, botar ela para dormir, vou lavar as roupas dela. E não vou deixar nenhum menino ficar querendo casar com ela, viu.

- Eu agradeço, Nancy, eu agradeço. Quando eu voltar, vou trazer um presente para você.

- Qual?

- Não sei. Quando eu voltar, eu decido o que é.

- Você pode trazer um vestidinho de algodão branco?

- Posso.

- E uma marionete?

- Posso.

- E um pote de doces de morango?

- Claro, claro, claro. Eu trarei tudo que você quiser.

- E eu vou ser a dama do teu casamento?

- Claro que sim.

- E eu vou usar o vestidinho de algodão no casamento?

- Sim, sim, sim. Agora, não esqueça de levar esta flor, viu?

Nancy leva a flor vermelha para Nina. Esta, ao receber a oferta sagrada do seu amor, cai em lágrimas.

E o tempo se passou.

Todos os dias, o sol se levanta no leste e se põe no oeste.

Os dias vão passando e Nina vai se tornando uma mulher. Linda, muito linda. Alguns anos depois, sua mãe falece. Nina fica sozinha no mundo. Não faltam candidatos a lhe querer violentar. Com nove anos, Nancy é a única amiga de Gianina. É a única que a protege. Obriga até mesmo os seus pais a cuidarem dela. Como sua mãe morreu, Nina vive em maus lençóis. Falta comida vez por outra. Nancy, quando fica sabendo disto, rouba comida de casa e lhe dá para a amiga. Mas os pais de Nancy também morrem e ela é levada para uma aldeia vizinha, para morar com uns tios. A vida de Nina, então, só tende a piorar.

Constantes passam a ser os ataques de violência, as tentativas de estupro, as cusparadas, a fome, a humilhação. “Onde está Giuseppe que não volta, meu Deus?”, questiona a pobre Gianina. Aos dezoito anos, nada lhe é sorriso. E o tempo continua a passar.

Lá pelas bandas de Clermont, vive Giuseppe. Por saberem de seu passado, ele vive numa clausura, isto é, um quarto fechado à chave, somente recebendo orientações espirituais, ensinamentos eclesiais e comida. Uma vez por semana, é levado, acorrentado, ao pátio, para tomar sol. Está sendo instruído na filosofia de Aristóteles. “Como será que anda minha bela Nina? Será que ainda está viva?”. Vários anos já se passaram. Desde o começo, Giuseppe teve uma idéia: aprender um ofício intelectual e, quando percebesse que estava pronto, fugiria para a fronteira, voltaria para encontrar Nina e partiriam para a Ibéria. Lá, trabalharia em qualquer casa de burguês ou aristocrata, sendo professor dos filhos das elites. Ela também aprenderia a filosofia. E, assim, seus planos de adolescência dariam certo.

O tempo havia chegado. Mas, seus planos foram modificados. Dada a sua impressionante aprendizagem na legislação canônica, foi escolhido para auxiliar do inquisidor geral da França, D. Euvécio Voltaire. E o irônico tempo vai lhe pregar outra peça. Lá na sua terra natal...

Um certo aldeão, Jean Tomby, está catando lenha para o fogo, junto com seu filho de dois anos. Por descuido seu, perde seu filho no bosque e, enlouquecido, passa a procura-lo, alardeando outros companheiros. A busca tem de ser rápida, pois a noite se aproxima. Vagando pela redondeza, Nina encontrou seu filho e o levou para casa. Deu-lhe comida, um banho e o colocou para dormir. Mas, Nina era uma “bruxa” e como tal...

Junto com diversos moradores, Jean Tomby vai procurar a criança no bosque, chegando à casa de Gianina e, como de se esperar, lá estava a criança. Claro que estava sendo bem cuidada, tinha sido alimentada, lavada, estando, agora, a dormir.

- Tem alguém aí?, pergunta Jean.

- Sim. Procuram a criança? Respondeu Nina.

- Estamos buscando meu filho. Como você o encontrou?

- Estava perdido no bosque. Não sabe nem dizer o nome e chora bastante.

- Podemos entrar?

- Sim, entrem.

- Espere. Você não é aquela bruxa?, disse Jean, com espanto, ao entrar.

- Não, não sou bruxa não.

- É sim, todos nós lembramos de você. Você pegou meu filho para fazer magia.

Na confusão formada, surge um grito: “Fogo à bruxa!” “Ela seqüestrou um inocente!” “Fogo a ela!”. Os oito homens invadem a casa, pegam a criança em pranto e amarram Nina. Ela é presa à um tronco e todos, mais uma vez, começam a xinga-la, cuspi-la, açoita-la. São oito homens prendendo uma bruxa selvagem, como pensavam. Graças a Deus, dentre eles havia um justo. E este não permitiu violências despudoradas contra ela, temendo castigo dos céus. “Ela bem quem merecia provar de nós oito. Garanto que a gente tiraria o diabo dela!” disse um em meio à risadas. “Não! Ela pode ter parte com o diabo e trazer maldição para nossa aldeia. Vamos leva-la para o padre”.

Mesmo com todo protesto do justo, levam-na, amarrada, para a cidade. Durante o trajeto, um deles têm a idéia de tirar-lhe a roupa, ficando ela coberta apenas nas partes de baixo.

Quanto sofrimento viveu esta mulher. Que erro tão grande foi este de amar um garoto que tornaram proibido? Quantas Ninas você conhece por aí? Quantas vezes você não é tratada como Nina?

Ao entrar na cidade, mostrando os seios, suada, despenteada, têm nela a impressão de uma bruxa. Após o relato de “sequestro”, todos querem queima-la viva, ela é uma bruxa, tem que receber a punição.

Mas, as coisas estavam mudando. Dois fatos adiaram a sua condenação: era a semana santa e não se podia condenar ninguém neste período. E a Inquisição estava matando apenas os que eram julgados.

Neste mesmo dia, Nancy estava na cidade. Fora visitar uns parentes e, ao saber do ocorrido, parte para a igreja, para ajudar a amiga. Dado o prestígio que possuía, convence a igreja a esperar a vinda de um inquisidor geral para a região, coisa que ocorria de tempos em tempos. Enquanto isto, Nina viveria presa numa sela, no final da igreja.

Passariam-se quatro meses. Nancy mandou cartas e mais cartas para o irmão, na ânsia de encontra-lo. Por sorte, uma das cartas lhe chegou às mãos. E ele, prontamente, buscou ajuda do seu superior, o abade D. Euvécio Voltaire. O agora Padre Giuseppe sabia que não seria fácil convence-lo a ir até a cidade antes do período. Mas, alegou que sua mãe estava perto de morrer e ele queria esta última visita filial. Claro que sua mãe já havia morrido, mas esta foi a melhor idéia que teve. Conseguiu, então, partir uma semana antes do D. Euvécio. Seria o tempo ideal para liberta-la e fugirem.

Gastou dez dias na viagem. Acordava às cinco, cavalgava o dia inteiro, somente parava às sete da noite, exausto. Mas, sua amada estava lá. E era preciso salva-la, de uma vez por todas.

Enfim, chegou à sua cidade natal. Estava tudo do mesmo jeito que deixou, ou melhor, que foi obrigado a deixar. Nada de crescimento, nada de comércio. Pouquíssimos habitantes a mais que onze anos atrás. Mas, isto pouco importava. E ele agora era o padre Giuseppe, auxiliar do inquisidor geral da França. Prestígio, poder, dinheiro. Agora ele tinha como se impor. Qual plano ele usaria? Qual estratégia ele deveria usar?

Teve a idéia de chegar como um estranho. Era comum os religiosos mudarem de nome. Conversaria com a irmã, às escondidas, revelaria o plano, falaria com Nina e arranjariam um jeito de fugir.

Pelo menos uma semana de vantagem ele possuía sobre D. Euvécio Voltaire. Tinha de agir rápido, para não apresentar suspeitas.

Chegando durante a noite, foi em busca da irmã. Encontrou Nancy crescida como nunca imaginou. Ela estava casada há pouco mais de um ano com um camponês de uma aldeia vizinha. Os dois se emocionaram bastante. O tempo da justiça estava próximo. Pepe perguntou como ia Nina. Tinha de saber algo sobre ela, mas não demonstrar muito sentimento quando estivesse perto, apesar da saudade.

Nancy se ofereceu para ir levar comida para a prisioneira, a fim de lhe contar o que estava acontecendo. Era preciso evitar surpresas. Quando contou para a amiga da volta do irmão, esta sorria e derramava lágrimas de contentamento. “Como ele está? Está muito bonito? Será que ele ainda me ama? Será que vai gostar de mim, assim do jeito como estou?”. “Deixe de ser boba: claro que ele vai gostar sim. Ele voltou por que eu mandei chamá-lo”. As duas se abraçam.

Nancy volta para o local onde estava o irmão e, agora, começam a fazer um plano. Será que ele conseguiria leva-la para ser julgada longe dali? Ele era uma autoridade eclesiástica, tinha certos direitos. Mas, o padre o conhecia de tempos anteriores e, talvez, não permitisse. Então, tinha de esperar. Ele sabia, também, que alguém defende uma bruxa ou herege pode ser queimado na fogueira do mesmo jeito. O que fazer?

Primeiro, tinha de vê-la. Pediu ao padre para dar-lhe a penitência, o que lhe foi concedido. Ele entrou na cela. Pediu que fechasse a porta e que sua irmã ficasse de guarda, para não serem interrompidos.

Como ela estava linda! Há onze anos ele sonhava em vê-la novamente. Há onze anos ela sonhava com sua volta. E estavam ali, um perto do outro, meio que sem acreditar.

- Nina.

- Pepe.

- Como tu estás?

- Eu não sei, acho que estou bem, agora.

- Tu sofrestes muito nestes tempos?

- Você nem imagina... Meu único alento era sua promessa. Ainda guardo a flor.

- Eu tinha de voltar. Eu tinha de vir te buscar.

- Me liberta daqui, por favor. Me leva daqui. Não agüento mais sofrer.

- Eu vou fazer isto, não se preocupe.

- Me dá um beijo.

- Estou louco por isto. Vou ver se tem alguém olhando.

Ao perceber que não tinha ninguém olhando, Pepe aproximou-se de Nina. Ela estava acorrentada à parede, como se estivesse numa cruz, de braços abertos. Em seus pés, duas correntes presas a pedras. Pepe não se conteve muito. Abraçou-a e beijou-a como que a descontar os onze anos separados. Ela não podia abraça-lo, mas esforçou-se por aproximar-se dele e sentir seu corpo tão desejado. Amaram-se ali mesmo, apesar das condições. Foi rápido, mas era o desafogar de um grito de ambos.

Mas, foram pegos de surpresa. Sua irmã não pode conter o avanço do padre, que questionou tanta demora. Quando abriu a cela, a cena: os dois estavam fazendo amor.

- Vade retro, Satanás! Afasta-te destes corpos, belzebu. Isto só pode ser coisa de bruxa. Condenada. Você está levando um servo de Deus ao pecado. Você o enfeitiçou. Tragam a tocha e preparem a lenha. Não vou esperar que chegue o inquisidor. O mundo precisa se livrar dos demônios.

Ao gritar isto, pôs em pânico o casal. Eles não deviam ter feito aquilo neste momento. O padre velho, desconcertado, pegou um chicote de couro e começou a chicotear a infeliz. Pepe saiu em seu socorro. Deu um murro no padre e, tomando-lhe as chaves, soltou a garota e tentaram fugir. Mas, o alarde causado pelo padre chamou a atenção de aldeãos. Estes chegaram rápido, a tempo de prender os dois. O padre velho se refez da pancada e ordenou: “Coloquem dois troncos no meio da praça. Vamos fazer a justiça divina reinar sobre esta cidade”.

E começaram os preparativos.

Lenha, tronco, cordas, tudo pronto. No meio da praça, defronte à Igreja, ocorreria a cena: Pepe foi amarrado à direita, Nina à esquerda. Estavam transtornados, angustiados. Pepe se reclamava da irresponsabilidade. Nina não queria que seu amado tivesse aquele fim. Sem controle também estava Nancy, mas o seu marido a agarrou e levou embora da aldeia.

Onze anos depois!

Tudo de novo. Ela nunca teve paz nem sorte.

Ele não teve tempo de viver, com ela, o amor que tanto sonharam.

- Você se arrepende de seus pecados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo?

E você, se arrepende de seus pecados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo? Que a misericórdia de Deus venha a vocês pelas chamas deste fogo e que pelo seu sofrimento, mereçam um lugar no purgatório, se esta for a vontade divina. Se não se salvarem, suas almas vagarão pelo infinito eterno, sofrido, uma ao lado da outra, porém sem nunca se tocarem, sem nunca concretizarem o amor, até que Deus tenha pena ou ocorra o Juízo Final. Fazemos isto pela Glória de Deus. Ponham o fogo!

Milhares de gritos se ouviam. Gritos de xingamento, de horror, de pena, de raiva. Ambos estavam gritando das dores horríveis das chamas. Uma cena inconcebível de ser autorizada por quem diz que representa Deus e seu amor na Terra.

Nina e Pepe se olharam. Seus olhos se cruzam. Eles ainda têm tempo de gritar que se amam. Ao ver isto, os presentes sentem medo e alguns, até mesmo, arrependimento. Uma velha que estava vendo a cena e era meio bruxa, apesar de escondida, faz um pedido aos céus:

- Pai nosso, criador de tudo. Conceda a estas duas pobres criaturas, filhos da desventura e da ignorância, que tenham a chance de viver o amor que tanto desejaram nesta vida. Conceda-os viver o amor, pois, foi para isto que o Senhor, Todo Poderoso, nos criou. Que eles paguem seus pecados, se tiverem. Mas que tenham uma chance antes que tudo se acabe.

Ao dizer isto, abriu os braços, voltando-os para os dois, como que os abençoando.

E eles expiraram.

O fogo crepitava com força, devorando a carne, agora jazida, dos dois amantes.

Aos poucos, a cidade voltou para as suas casas. Aos poucos, as chamas dão lugar às brasas, que, também aos poucos, vão dando lugar às cinzas.

E, naquele instante, poderia ter terminado uma história de amor, não fosse a maldição do padre ou prece benevolente da bruxa.

O que será que aconteceria com os dois a partir dali?

Pois bem: estavam condenados a vagar, encarnação por encarnação, próximos um do outro, porém separados, sofrendo, até que, em algum dia, descobrissem toda a história no passado e quebrassem a maldição.

Já reencarnaram mãe e filho e não descobriram. Já reencarnaram pai e filha e não descobriram. Já reencarnaram sendo, ambos, mulheres, e não descobriram. Já reencarnaram sendo homens e também nada desconfiaram. Já reencarnaram em países diferentes. Já reencarnaram em castas indianas diferentes. Já reencarnaram em tempos diferentes.

Eis que, agora, estamos no começo do século XXI.

Por onde andariam os dois???

Já ouviram falar de Pernambuco?