Nós Dois

Está tudo escuro. Deitado e sem apoiar a cabeça no travesseiro, olho para o teto como se quisesse encontrar algo, uma luz cintilante ou algum portal mágico no qual eu possa fugir sem deixar rastro.

Nada mais faz sentido. Um vazio enorme adentra ao meu peito, uma desesperança e a certeza que a minha vida nunca mais será a mesma.

Como não pude perceber? Como pude negligenciar a pessoa mais importante da minha vida durante tantos anos? Não consigo encontrar respostas e a única certeza que tenho é que eu a amava tanto que agora consigo perfeitamente entender as apaixonantes estrofes de um dos mais famosos poemas de Camões*.

Por alguns segundos sorrio levemente relembrando da nossa viagem a Paris, a bela cidade luz, que iluminou o nosso amor e nos deu a certeza que queríamos viver juntos para sempre.

Não será mais possível. O sorriso se foi juntamente com o silêncio, perturbado pelas palavras infames do carcereiro informando que já estava na hora de acordar para os trabalhos matinais, transparecendo assim a rotineira e triste realidade da Penitenciária de Bakersville.

Enquanto levanto da fria e mal cheirosa cama, penso, fitando a luz sombria da cela, que tirei a vida do meu amor, mas de alguma forma ela sempre estará comigo, no entanto, para o meu infortúnio, a minha vítima preferida, o jovem e viril amante dela, nunca nos deixará em paz, ele constantemente estará conosco nos meus mais íntimos pensamentos.

Maldição!, nunca mais seremos nós dois...

* Luís Vaz de Camões (1524/1580) é considerado um dos maiores poetas da língua portuguesa e, dentre os seus belos poemas, um dos mais famosos é: “Amor é fogo que arde sem se ver”, a seguir reproduzido:

"Amor é fogo que arde sem se ver;

É ferida que dói e não se sente;

É um contentamento descontente;

É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;

É solitário andar por entre a gente;

É nunca contentar-se de contente;

É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;

É servir a quem vence, o vencedor;

É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor

Nos corações humanos amizade,

Se tão contrário a si é o mesmo Amor?"