A Tirânia das Fátimas

Volto ao passado mais remoto só para me situar. Nasci por lá, terra perdida na vastidão de matas de eucalipto e milheirais. Foi há tanto tempo que o que a memória me dá são pessoas a contar histórias em dialeto à roda da fogueira e a família dobrada sobre o rádio que chiava entre as sumidas palavras que diziam de outras liberdades e progressos. Fátima, a minha prima mais velha, a que ajudava a minha mãe a segurar os muitos filhos dentro da ordem familiar, já nessa altura, tirânica, não me deixava nem ouvir conversas, nem vê-la tomar banho ou tirar macacos do nariz. Logo que deitei corpo conheci no Colégio uma Faty, com i grego, filha única do patrão do meu pai, um doce de menina por quem me apaixonei depois de alguns encontros casuais. Viria a saber depois que, afinal, havia um lacrau sobre a sua casca e tive de sair dali só porque, também teimoso, lhe não acatei as regras nem os mandos. Quem pode dita, dizia-me o Juvenal, um apagado professor de canto coral. - Faz por te dares bem com ela ou o pai vai arranjar-te sarilhos. Arranjou. Passaram todos os anos que foram necessários para eu concluir o Liceu e avançar na Faculdade quando outra Fátima tomou assento ao meu lado, seguiu o que disse, comparou o que escrevi, me olhou como se eu fosse a sétima maravilha do mundo. Namorámos. Com a oficialização da nossa relação a Fátima deixou-se de concessões. Estaria tudo bem se a minha vida inteira, dos apontamentos aos poemas, dos roteiros ao tempo disponível, estivessem apenas a seu serviço, ao sabor da sua vontade. Fugi. Ganhei asas, passei a determinar-me com plena autonomia. Que bom era ter as Eneidas, Marias e Matildes disponíveis sem me prender a ninguém, sem ver-me preso a nada. Aprendi que a liberdade é uma essência vital. A mim, nunca mais Fátima alguma sujeitaria. Palavras loucas, desejos vãos. Tranquilamente instalado no amor de Clotilde, curso pronto, começo de vida a rolar era tempo de casar. E casei. Quando li os papéis para a cerimónia constatei que a Clotilde também era Fátima, homenagem a uma avó guerreira que ainda existia a cuidar de campos e de uma vara de porcos nas terras de Viriato. Pode ser que não, acalmei-me. Esta é, em primeira instância, Clotilde. E gosta tanto de mim, pensei. Infelizmente a Clotilde Fátima nem era tão serena, nem tão doce e o inferno começou logo que nasceu o menino e durou bastante, tanto que acabei, por precaução, a decidir que não teria nenhuma outra ligação estável na minha vida. Assim que elas mudavam o lugar dos móveis da minha casa e me via a ver a TV do lado oposto da sala, era tempo de acabar. Foi assim até tu aconteceres no meu corpo, no meu espírito e no meu coração, Fátima.

FIM

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 29/09/2014
Código do texto: T4980697
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.