DIVÓRCIO

Marta, a secretária, verificando que o Doutor José Luís estava ao telefone, resolveu não esperar que este desligasse e bateu ao de leve na porta do gabinete, entrando perante o sim interrogativo que ouviu, embora reconhecendo alguma irritação na voz,

- Não vê que estou ao telefone?

- Eu sei doutor, desculpe, mas tenho a doutora Francisca ao telefone, muito aflita mesmo, e que pretende falar-lhe. Ela disse-me que está quase sem saldo no telemóvel.

- Passe-me a chamada, então.

Conclui a chamada que tinha em curso, interrompendo uma conversa banal com a minha amiga Teresa, prometendo que lhe ligaria de seguida.

Ouvi de imediato a voz estranha, velada e enrouquecida da minha cliente,

- Doutor José Luís, estou horrorizada, preciso de lhe falar, vou a caminho do hospital, o meu marido cumpriu o que tinha dito: suicidou-se! Ouviu doutor? Suicidou-se!

A voz estava completamente alterada de aflita, entre o choro contido, o susto e o peso na consciência de uma culpa que eu pressentia pesada como chumbo.

Fez uma pequena pausa e continuou,

- Ele matou-se… o Manuel suicidou-se… o senhor e o seu pai tinham dito, lembra-se…

A chamada caiu, a falta de saldo é como a morte, não tem contemporizações com ninguém.

Fiquei com o telefone na mão, mudo, estático, estupefacto e revoltado.

Sim, revoltado com o meu pai, revoltado com o doutor António Moreira, o infalível!

Pedira-lhe a opinião sobre aquela situação particular e sensível, naquele divórcio que tinha entre mãos.

Fora peremptório, arrogante mesmo, ironizando com aquele sorriso que ia descaindo como que escorregando pelo canto direito da boca, gozando com a inexperiência do novato que ousava deixar transparecer alguma dúvida a respeito das suas convicções. E acabava por vencer e convencer arremessando, como se as palavras fossem balas, com o enorme número de casos idênticos com que se tinha deparado ao longo da carreira, e que ia citando, pondo em cada frase que pronunciava o peso de ouro da sua incontestável experiência profissional, nomeando cada caso que resolvera, não esquecendo um único nem as suas particularidades, enquanto soltava sorrindo na minha direcção, através dos olhos muito abertos e com o balançar da cabeça, os raios mortíferos da sua ironia.

No entanto, agora, toda essa experiência deixava-me nesta situação terrível: uma morte na consciência; na minha e na da minha cliente.

Acabara há cerca de três anos o curso de direito.

Seguira as pisadas do meu pai e apesar de nunca termos falado muito acerca do assunto, sempre considerei como um percurso natural da minha vida profissional ir trabalhar com ele, assim que acabasse de me formar. A minha mãe, os meus tios, a família em geral, consideravam isso inquestionável. Para mim era como um dado adquirido, um caminho em que nunca reparei nas derivações, em que nunca parei para analisar outras escolhas possíveis.

E assim aconteceu. No fim do curso lá estava eu, num gabinete bem em frente do dele.

Durante os primeiros tempos de trabalho no escritório, um ano ou talvez um pouco mais, fazendo tarefas menos importantes, ajudando em processos, procurando e colhendo elementos, familiarizando-me com as burocracias próprias destas artes, até que por fim me começou a passar casos, considerados os mais simples e adequados à minha experiência, conseguindo assim que a minha confiança fosse gradualmente crescendo.

Todos os dias nos reuníamos ao fim da tarde, fazíamos o ponto da situação dos vários assuntos relativos aos processos em curso, debatíamos e esclarecíamos as dúvidas que tínhamos e tomávamos resoluções para o dia seguinte.

Foi nesses fins de tarde que me dei conta dos conhecimentos que os anos tinham acumulado atrás daqueles olhos claros, determinados, inflexíveis e até um pouco duros. Aí encontrei a razão para o seu convencimento que, tal como a luz que atravessa um prisma, se separava em arrogância, ironia, desdém, mas também…em verdadeira sabedoria.

Foi nesses fins de tarde que aprendi muito e rapidamente, quase tudo o que sei e, com certeza, o que de mais valia retive e me valeu na solução das tantas situações difíceis que se depararam na profissão que escolhi.

A área que mais fama e proveitos trouxeram para o nosso escritório - como eu dizia, contrariamente ao meu pai que sempre dizia, o meu escritório - era os divórcios.

E a seguir à revolução de 25 de Abril as separações de casais tornaram-se correntes. A ânsia de liberdade não ficava só na rua, entrava pelas casas, ia até ao quarto, chegava à cama.

Os divórcios sofreram um aumento significativo, sendo o meu pai muito procurado pela fama dos êxitos que tinha acumulado na sua vida profissional nesse ramo.

O doutor António Moreira era conhecido por procurar sempre os entendimentos possíveis evitando ao máximo desgastes e traumas que sempre aparecem associados aos desencontros familiares irreversíveis. Procurava a todo o custo convencer os seus clientes a repensarem a decisão, especialmente se havia filhos envolvidos.

Se verificava a impossibilidade de se conseguir a reconciliação, fazia então todos os esforços, aconselhando, argumentando até ao cansaço, intimidando mesmo nalguns casos, para conseguir poupar as crianças ou adolescentes de serem usados, como tantas vezes são, nas pequenas vinganças e retaliações que os pais pretendem infligir-se através deles, usando-os sem dó nem piedade, consciente ou inconscientemente, sem qualquer preocupação do mal, quantas vezes irreversível, que vão causar.

Esta era a sua maneira de actuar, a experiência que me foi passando, a escola que tive por assim dizer, e que passei a seguir na minha actuação nestes casos: os divórcios.

Mas tudo tem o seu reverso. Para aprender, para tirar partido de todo o saber que me podia transmitir, tinha que reunir toda a paciência necessária para aguentar a tal faceta desagradável que o tornava tantas vezes difícil de suportar: - os êxitos que obtivera transformaram-no num dos advogados mais conhecido no seu meio, muito conhecido mesmo, tornando-o bastante convencido da sua infalibilidade, desdenhando bem-humorado das minhas hesitações de iniciante, manifestando nessas alturas a tal arrogância bastante irritante, debitando com ar superior as lições que julgava conveniente e se dignava transmitir-me. Era como aqueles professores teoricamente óptimos mas de quem os alunos não gostam porque se sentem colocados na situação de seres inferiores, pobres ignorantes, sempre a uma enorme distância do mestre, separados pela barreira intransponível do conhecimento dificilmente alcançável pelas suas cabeças, quase todas, para ele, ocas ou medíocres.

Eu confesso, um pouco infantilmente, esperava acontecer um dia uma escorregadela do “mestre” para chegar a minha vez de poder mostrar-lhe como um sorriso pode ser falsamente tolerante, mas na realidade irónico, bem-disposto, fingindo-se complacente e..., sendo na realidade trocista. Ah, como gostaria!

Foi então que surgiu o caso da doutora Francisca e do doutor Manuel Baptista, ambos médicos, pretendendo ela, a mulher, divorciar-se.

A doutora Francisca aparecera no escritório num dia igual a todos os dias, já nem me lembro se cinzento se azul, por volta das dez da manhã, pedindo para falar comigo. O nosso escritório fora-lhe recomendado por amigos, como me disse em resposta à minha pergunta de como tinha chegado até nós.

O meu pai estava de viagem, portanto, o caso seria meu. Era o que tínhamos combinado previamente, pois já dividíamos entre os dois, quase indiscriminadamente, os clientes que nos apareciam. Dependia sobretudo da carga de trabalho de cada um na altura em que surgiam.

Convidei-a a entrar no meu gabinete.

Era uma mulher ainda nova, entre os trinta e cinco e os quarenta anos, não muito alta, de formas arredondadas um tanto ou quanto exageradas em função da altura, nem feia nem bonita; vinha vestida simplesmente com uma blusa colorida e uma saia cinzenta comprida, que em nada a favorecia pois era baixa e calçava sapatos rasos. Manifestava grande à-vontade e modos determinados, era comunicativa e com olhos vivos, expressivos e irradiando simpatia.

Entrou, sentou-se na minha frente e foi-me contando a sua história.

- Quero divorciar-me doutor José Luís. Já não aguento mais o meu casamento, nem o meu marido, o Manuel.

Parou um pouco olhando-me, talvez na expectativa de alguma reacção minha, mas como me mantive calado esperando que continuasse, ela prosseguiu,

- Conheci o Manuel durante a universidade, somos ambos médicos. Concluímos os respectivos cursos no mesmo ano. Eu especializei-me depois em cirurgia pediátrica e ele dedicou-se a clínica geral.

A doutora Francisca fez mais uma pequena pausa. Pela maneira determinada e rápida como falava parecia querer expor toda a sua história, as suas razões, sem interrupção, pois até a minha sugestão ao oferecer-lhe água, apontando para o copo que tinha colocado na sua frente, porque me pareceu um pouco perturbada, recusou. Permaneci então calado incitando-a tacitamente a prosseguir.

E continuou,

- Acredito que o doutor já deve estar a pensar que gosto, ou tenho, outra pessoa. Não é o caso. Aliás com as mulheres é o que mais se passa, separarmo-nos sem termos ninguém; com os homens é que isto nunca acontece, com os homens, passa-se sempre o oposto, nunca dão este passo sem terem já alguém.

Sorriu convencida da sua verdade, olhando-me nos olhos desafiadora e, talvez para amenizar o que tinha dito, acrescentou: - com as minhas desculpas, mas é a verdade, doutor. E prosseguiu,

- Na realidade o que acontece é que com o decorrer dos anos todos nós vamos evoluindo e essa evolução, desigual em cada um, vai em muitos casos afastando o casal. É como nalguns rios em que perto da nascente as margens se mantêm próximas, mas que no seu percurso para a foz, ao longo desse caminho, vão engrossando, as suas águas crescendo por receberem afluentes e as margens, essas, afastando-se sempre até se perderem uma da outra, mal se vendo. Comigo e com o Manuel deve ter sido assim.

Temos feitios completamente diferentes, mas até uma certa altura da nossa vida pensei que se complementavam. Eu extrovertida, gostando de conviver e contactar com colegas e as pessoas em geral - tenho vários amigos e amigas - ele introvertido, gostando do isolamento, quase sem amigos,… eu procurando progredir em conhecimento e técnica na minha especialidade - a cirurgia nos dias de hoje não se compadece com estatismo - e ele satisfeito com o conhecimento que adquiriu, como se nos tempos que correm isso fosse suficiente, querendo simplesmente o consultório, os seus doentes, quando muito lendo uma ou outra revista…

Resolvi interromper a minha cliente,

- Mas foi sempre assim desde que se conheceram e namoraram? Não se apercebeu dessas diferenças desde logo?

- Claro que sim doutor, mas gostei dele e ele – devo dizê-lo – era e é apaixonado por mim, o que agora torna tudo mais difícil. Não se manda no coração, o senhor sabe como é, sobretudo quando se é novo.

A maneira de ser dele, lento a fazer tudo – a caminhar, a falar, a decidir – parecia-me no princípio de um homem calmo, agora impacienta-me. A sua forma de vestir que antes me parecia, ternamente, descuidada, agora parece-me ser só desmazelo difícil de suportar. As suas incapacidades de relacionamento na convivência social que me pareciam timidez, hoje julgo-as, na realidade, limitações de cultura, … sabe como é doutor…

Enfim…, enquanto namorávamos e mesmo ao longo de vários anos depois de casados - somos casados há doze anos - eu como que o arrastava comigo para o convívio e para a vida fora do consultório e de casa. E ele até gostava, estou convicta, pelo menos nos primeiros anos.

Mas ser sempre nossa a iniciativa para tudo, começa a cansar.

Depois, profissionalmente, na especialização que decidi seguir, as conferências, estágios no estrangeiro e os respectivos contactos criados são essenciais e o Manuel começou até a levantar obstáculos e a procurar sempre razões para contrariar qualquer viagem que programasse com esta finalidade.

Aliás mesmo viajar de férias começou, gradualmente, a fazer-lhe confusão, sendo o seu ideal passá-las em casa, e se possível sem ver ninguém. Os contactos, para além dos estritamente profissionais entediavam-no, e pior do que isso, começou a levantar problemas com qualquer relacionamento meu, até com colegas de trabalho, homens sobretudo, claro, mas também com mulheres.

Ultimamente veio com a ideia de ir exercer na província, viver fora da cidade.

Não consigo aguentar mais, doutor José Luís, está a sufocar-me, a criar limitações inultrapassáveis à minha carreira e à minha vida pessoal. Viver fora de uma grande cidade com a minha especialização, é parar, desactualizo-me em pouco tempo, acabo profissionalmente.

A doutora Francisca fez uma pequena pausa e deixou transparecer uma ponta de emoção, um olhar triste reflectido num encolher de ombros, um baixar da voz, concluindo num sopro: - Eu não gosto mais dele, não o amo mais.

Bebeu então o copo de água todo de uma vez. E ficou à espera.

Quase fui apanhado de surpresa pela conclusão do seu monólogo, tal como o aluno que está distraído e é apanhado em falta pela pergunta que o professor lhe dirige.

Não esperava uma conclusão tão rápida nem a frase final da mesma: não o amo mais. Poderia ter sido a primeira e quase a única. Tudo o resto só a confirmaria. Mas sabia, por experiência própria também, que não era assim que as coisas se passavam. Sempre se procura justificar o fim de uma relação com várias razões que o parceiro nos dá para isso, quando na realidade de quase sempre, só há uma: o amor abandonou-nos. É isso, tão-somente isso, como a ave que habita o nosso beiral e um dia de repente nos damos conta que partiu, porque sem nos apercebermos, a primavera acabou.

Tudo o resto que colocamos antes, como se fosse a razão, na realidade é consequência, vem depois.

São fases da vida que deixam sempre um gosto amargo, mas que o tempo se encarrega de diluir, tal como o torrão de açúcar acaba com o amargo de boca do limão.

Interrompi esta sucessão de pensamentos sem grande objectividade e perguntei,

- Vocês têm filhos?

- Não, doutor, não temos.

- Isso torna tudo mais fácil, só estão envolvidos vocês os dois.

- Pois é doutor, mas fácil é que não está a ser… Sabe que ele agora me ameaça, e é uma ameaça mesmo a forma convicta e veemente como ele a pronuncia, como se me atirasse uma pedra: - Se me deixas mato-me!

E o pior é que tenho receio que o faça. Mas não vou ficar tolhida com esta chantagem emocional… Pelo menos espero que o seja, concluiu a minha cliente, meio hesitante.

- Se está mesmo resolvida vamos avançar para o divórcio, doutora Francisca. Preciso só de alguns elementos que a minha secretária lhe vai pedir e depois devemos agendar outra reunião para avançarmos.

Despedimo-nos, agendando a próxima reunião.

Dois dias depois fui confrontado com uma inesperada e enorme surpresa.

De manhã, ao entrar para o escritório, esperava-me na rua um homem ainda relativamente novo, alto, seco, ligeiramente curvado, olhos grandes e escuros carregando uma tristeza que nunca os devia ter abandonado, vestindo duma maneira descuidada, o corpo flutuando no meio da roupa que teimava em se lhe ajustar com ajuda de um movimento de ombros, repetido mecanicamente, de vez em quando.

Ao ver-me, avançou decididamente na minha direcção, contradizendo o seu aspecto vago e impreciso, todo ele indecisões, e dirigiu-se-me numa voz grave e falando com lentidão,

- Doutor José Luís Moreira?

- Sim, sou eu.

- O meu nome é Manuel Baptista e sou marido da sua cliente, a doutora Francisca.

Não estava à espera deste encontro. Apanhou-me completamente desprevenido e a única coisa que me ocorreu dizer foi que não devia, não podia falar com ele porque era o advogado da sua mulher.

Respondeu-me,

- Não preciso nem quero que fale comigo, oiça só o que tenho a dizer-lhe.

Peço-lhe que aconselhe a Francisca a parar com esta tolice que é o divórcio. O senhor não sabe como sempre vivemos, como gosto dela, como a amo. A minha vida sem ela é um vazio intraduzível em palavras, onde tudo soa longe, sem significado, sem vontades. Nada que eu faça faz sentido se ela não estiver comigo, é como estar perdido num deserto onde até a vontade de procurar água nos abandonou. Eu não vou viver sem ela…

Ia interrompê-lo para lhe pedir por favor para não continuar, porque não podia fazer o que me pedia, não o podia ajudar no que queria, e também não queria continuar na rua a ouvi-lo, dividindo a minha atenção com alguns curiosos que já tinham parado no passeio perto de nós, numa manifestação da velha curiosidade pelo mexerico, da despudorada curiosidade dos sem-que-fazer, sempre presentes nestas ocasiões. Mas com um gesto da sua mão para me fazer parar, continuou,

- Eu termino já doutor,

E com uma firmeza e decisão inesperadas na voz, conclui olhando-me fixamente nos olhos,

- Quero que saibam, que se for para a frente com a acção de divórcio sei que ficarei em pedaços e sem qualquer ânimo para reunir de novo os estilhaços que restarem. Eu vou suicidar-me. Mato-me! …pode estar certo. Desse peso na consciência, não se vão livrar. Nem o senhor nem ela!...Adeus doutor…e olhe que eu cumpro!

Afastou-se, olhos pendurados, de velho, um sorriso ténue e amargo, e mais vazio do que nunca naquela roupa onde parecia flutuar, mas num passo firme que me fez continuar a olhar para ele, só então reparando que era um homem bem mais alto do que me parecera inicialmente, com bastante cabelo negro que lhe caia solto dos lados tapando as orelhas, e com duas pequenas manchas grisalhas nas têmporas, braços compridos abandonados ao longo do corpo e aparentando uns quarenta e cinco anos, no máximo.

Fiquei impressionado. Que estranha reacção, demonstrada num sentimento tão irremediavelmente profundo, sem vontade de possibilitar ou encarar substituição, num homem daquela idade, novo, com tanta vida pela frente.

Enquanto subia a escada e empurrava a porta de vidro fosco do escritório soavam-me na cabeça aquelas últimas palavras: olhe que eu cumpro. Parecia-me uma ameaça velada, intimidando como uma pistola apontada.

Foi quando decidi falar com o meu pai, contar o que acontecera,

- Marta, o doutor António já chegou?

- Já sim, senhor doutor.

- Ele está sozinho?

- Está.

Resolvi entrar no gabinete. Pensava para comigo que o senhor infalível devia ter alguma coisa a dizer sobre esta minha inquietação.

E fora peremptório, como sempre. Não se discutia a sua experiência incontornável.

- Nunca cumprem! Ninguém se mata por essas razões! Sou eu que te digo.

- Mas… ele parecia tão decidido… já disse o mesmo à mulher também…

- Já te disse! Não ouviste? Ninguém se mata por essas razões. Não conheço um único caso.

E foi por isso que quando me vi com o telefone mudo na minha mão, chamada caída por falta de saldo e que já não atendeu quando tentei devolvê-la, mostrando-me um enervante “fora de área” no mostrador, foi por isso, que o meu primeiro e quase violento instinto foi levantar-me, abandonar o meu gabinete e invadir o dele, mesmo sem me fazer anunciar.

Sentia um mal-estar a crescer sem cessar, a sensação de culpa e a revolta em relação ao meu pai, às suas certezas convictas que agora me faziam duvidar até de mim próprio, fazendo-me sentir estúpido e crédulo como um idiota.

Ele matou-se… o Manuel suicidou-se.

Esta frase no som metálico do telefone soava como se fosse pronunciada por um juiz divino, apontando o dedo com um raio prestes a soltar-se para me atingir, castigando a minha imprudência e cómoda credulidade nas palavras do meu pai, a velha experiência dos mais velhos que afinal às vezes não é mais do que a expressão da vontade de os deixarmos em paz com problemas que para eles não o são, ou simplesmente porque não estão com paciência para nos ouvir.

Entrei sem pedir licença,

- Está a ver pai, quase gritei, ele matou-se! Suicidou-se mesmo! Acaba de me falar a mulher desfeita e eu nem sei…

- Quem é que se matou? Vê se te acalmas.

- Não se lembra daquele divórcio, aquele tipo que me abordou na rua, antes de ontem, eu falei-lhe, não se lembra?

Atropelava as palavras que debitava em catadupa como se com elas pudesse fazer soltar e expulsar, acompanhando-as, toda a culpa que sentia.

- Sim já me lembro. Ele matou-se? Coitado… que chatice… É o primeiro caso que conheço… Tens a certeza?

- Oh pai! Foi ela que me falou, acha…é só isso o que tem a dizer?

Marta, parou na porta do gabinete interrompendo-nos e,

- Doutor José Luís está ao telefone a doutora Francisca.

Precipitei-me para o meu gabinete, para o telefone.

- Então doutora?

- Doutor José Luís, nem sabe como estou aliviada. Assim que pude vim falar-lhe. Ele não conseguiu matar-se. Tentou mas não conseguiu. Está vivo e fora de perigo. Amanhã vou aí e conto-lhe tudo.

Agradeci-lhe o telefonema e deixei escapar um aliviado: - espero-a com ansiedade amanhã, boa tarde.

Caí na minha cadeira incapaz de fazer fosse o que fosse. Era como se tivesse acordado de um sono, que felizmente durara pouco tempo, interrompendo o pesadelo aterrador em que se tornara.

Estava cansado. Levantei-me da cadeira, vesti o casaco lentamente e saí. Precisava de apanhar ar fresco para acordar em definitivo do sonho mau que vivera.

No dia seguinte, tal como tínhamos combinado, a doutora Francisca apareceu e contou o que se tinha passado.

De manhã, ainda durante o pequeno-almoço tinham-se envolvido numa discussão, como ia acontecendo frequentemente e pelos mais inesperados motivos. Neste caso fora pela recusa veemente dela em desistir do divórcio e culminara com ela a mandá-lo embora de casa e ele, num acesso de raiva, sempre contida e silenciosa como era habitual, a agarrar nalguma roupa e a colocá-la numa mala, explodindo raivoso: - Vou para casa dos meus pais!

- Nem respondi, doutor, e fiquei a pensar: - oxalá seja de vez.

Pelo que soube depois, não os encontrou em casa porque tinham ido passar o dia com os netos e a filha, única irmã de Manuel e Eduardo, em Sobral de Monte Agraço, onde vivia.

Pediu a chave que os pais sempre deixavam na vizinha em frente e, aparentemente calmo, entrara. Depois, instalara uma cadeira da sala na cozinha, calafetara esta porta e a da marquise também, não sem antes retirar a gaiola com os canários do pai, que foi colocar na varanda, para onde enxotou igualmente a gata da mãe. De seguida abriu o gás dos bicos do fogão, todos, assim como os do forno.

Foi então, doutor José Luís, que a providência divina ou a sorte, conforme a fé de cada um, interveio.

O Eduardo, irmão mais velho que vive no Algarve, solteiro, dono de um bar em Lagos e que se desloca frequentemente à capital, às vezes fora de horas, conservando por isso mesmo a chave de casa dos pais, veio a Lisboa. Nessa manhã teve que vir tratar de um problema nas finanças.

O resto é fácil de perceber. Entrou em casa, deparou com o espectáculo do irmão, que julgou morto, abriu rapidamente todas as janelas, ligou para o 112 e depois para mim, informando-me desesperado que o irmão se matara, pedindo-me para ir ter logo com ele.

A ambulância do INEM levou-o para Santa Maria conseguindo reanimá-lo, pelo que soubemos depois, ainda antes de chegar ao hospital.

Eu igualmente desesperada, fui ter com o Eduardo, que estava incapaz de conduzir, seguindo os dois de táxi para onde a ambulância se dirigia. Foi do táxi, nem consigo explicar porquê, que lhe liguei. Suponho que queria dividir a minha culpa com alguém e só me veio o senhor à cabeça por tudo o que tínhamos falado a esse respeito, a opinião do seu pai, o senhor mesmo…enfim, estava amargurada e queria um alívio, queria culpá-lo a si também, sei lá, não ficar eu sozinha com aquela morte às costas. Perdoe-me doutor mas com toda a franqueza foi isso que aconteceu. Felizmente a falta de saldo impediu que fosse ainda mais injusta consigo do que fui.

Assim terminou este caso de divórcio. Mais um entre tantos.

Manuel restabeleceu-se rapidamente e esqueceu o suicídio. Saber que a sorte raramente sorri duas vezes para a mesma pessoa, deve ter sido a dissuasão inconsciente, escondida no desamor que apesar de tudo continuava a carregar.

E divorciaram-se mesmo sem mais problemas.

Ela ficou a viver em Lisboa e é uma das melhores cirurgiãs na sua especialidade e ele foi viver para o Alentejo, no Redondo, onde exerce clínica geral.

Às vezes não acertamos com a vida, mas ela acerta connosco.

Quanto ao meu pai, quando lhe contei o sucedido disse-me unicamente:

- Eu não te disse? Nunca se matam por esse motivo. Por amor já ninguém se mata, podes estar certo.

- Oh pai! É espantoso como pode dizer isso depois do que aconteceu, é…

Interrompeu-me com um cinismo vitorioso,

- Ouve lá, e se ele tivesse morrido?! Nunca ouviste dizer que as excepções confirmam a regra?!

Parei de boca aberta a olhá-lo.

Virei costas e saí a abanar a cabeça, dizendo baixinho para Marta que me olhava sorrindo: - é realmente o “senhor infalível”!

E com um iceberg no lugar do coração, pensei sem dizer.

José Manuel Pyrrait
Enviado por José Manuel Pyrrait em 29/09/2014
Código do texto: T4981057
Classificação de conteúdo: seguro