SARRAFINHO
 
 
Rui sempre fora conhecido por ser uma pessoa comedida, sério, cheio de regras, sempre se policiando pra não ofender a outro, sendo cortês... um chato mesmo. Chato se comparado com o que se poderia dizer, seu outro lado, outra personalidade.
 
Certo dia estava ele em sua chácara, recebendo a família e os poucos amigos que tinha, comemorando seu aniversário. Crianças corriam pra cá e pra lá, e ele policiando-as pra que não se machucassem ou quebrassem alguma coisa; observava todo aquele movimento e intervinha quando necessário... com muita frequência mesmo. A esposa lhe advertia: “Deixa de ser chato! Deixe as crianças brincarem. Deixe que eu cuido delas”. Foi então conversar com os amigos, à beira da piscina. Recusara a cerveja e pedira um suco de graviola; mas não recusara o churrasco. Como todos ali já estavam acostumados com ele, nem reclamaram.
 
Um sobrinho vem correndo:
- Ôhh tio, o Juninho ta quebrando as regras. Ele atravessou a cerca pra pegar a bola. E disse que vai pular na piscina sem ninguém por perto.
Lá ia o Rui censurar e repetir as regras pras crianças. Respondiam quase que num coro só:
- Ta bom, tio. Nós vamos seguir as regras.
 
Os jovens dançavam forró num tablado armado um pouco mais acima, outros conversavam animados por ali. Entre um e outro contratempo e “quebra de regras”, risos, exageros, brincadeiras e brindes ao aniversariante, a muvuca corria solta; uma verdadeira bagunça em família. Por trás de sua seriedade, Rui gostava disso. Gostava daquele movimento todo. Sentia-se vivo.
 
Por volta das quatro horas da tarde, chega correndo um sobrinho, chamando-o:
- Tio, tem uma mulher ai que quer falar com o senhor...
- Tem uma senhora... – corrige ele.
- É. Tem uma senhora freira aí.
“Uma freira? Xiii, lá vem bomba pro meu lado” – pensa, já imaginando o que estava por vir.
- Tá. Diga que já vou.
 
Rui levanta-se pra ir encontrar a visitante, olha pra esposa que o segue. Já imaginavam quem era. Seguem a passos lentos, hesitantes e em silêncio, mas como que uma extensão um do outro, estabelecendo uma estratégia sobre como agir diante daquela novidade. De longe, na varanda lateral, ele a vê, sentada numa cadeira, hábito tradicional, cinza, cocar da mesma cor, um óculos de acetato, preto. Passa pela cabeça de Rui mandar dizer que não estava, mas era tarde pra isso.
 
- Boa tarde, irmã.
- Boa tarde, SENHOR Rui.
- Fico surpreso que tenha me encontrado e imaginando o que pode ter acontecido pra que você tenha vindo aqui... Sabe que gosto de privacidade.
- Surpreso por me ver aqui!? – Fixa, com olhar intrigado, aquela figura patética à sua frente – Depois da longa ausência, sem nenhuma explicação, e ainda imagina o que poderia me trazer aqui!? Francamente! Você me decepciona, SE-NHOR Rui. Depois de tudo ainda tenho que ouvir tanto disparate.
- Ei... Vamos com calma, irmã. Estamos na minha casa. Tenho uma reputação a zelar. Não posso permitir...
- Permitir o quê? – interrompe ela – Que alguém diga nas tuas fuças que você é um irresponsável? Porquê se esconde de todos, Sar-ra-fi-nho?
Rui não havia percebido que o sobrinho que o chamara ouvia tudo da porta. Este exclama:
- Sarrafinho!? Irresponsável Sarrafinho!?
 
Quando Rui se recobra da surpresa por ele estar ali, já é tarde demais. O garoto já havia dado as costas e, a toda velocidade, ido contar a novidade a todos. Observam o garoto que já chegava ao primeiro grupo de amigos dele. Estes olham em direção a Rui.
 
- Viu o que você fez? – Exclama Rui, dirigindo-se à Irmã Conceição.
- Não vejo nada demais. Não há motivo pra se esconder. Apesar de nossas diferenças, eu tenho apreço por você. Não fosse assim, não teria permitido tantas visitas suas ao meu orfanato. Você é precioso não só pra mim, mas pra todos daquele orfanato. Não pense você que eu não saiba o motivo de seu sumiço. Sei muito bem. E por isso lhe chamei de irresponsável. São pequenos anjos abandonados, que conheceram cedo demais a dor da rejeição – ela sabia usar as palavras pra tocar o ponto fraco de cada um – Você é uma referência pra maioria naquele lar. Aquela criança está internada. Recusa-se a comer. Nem ela, nem os outros entendem seu sumiço. Ir-res-pon-sá-vel. Isso que você é, Sarrafinho.
 
Rui fica sem saber o que dizer. Olha em volta e percebe que todos estão observando, e ouvindo sem nenhuma cerimônia, a conversa deles. “Ô moleque linguarudo!” – pensa. Fica mais constrangido ainda quando, Edgard, um primo muito brincalhão, balbucia: “Sarrafinho”?
 
Este era um lado de Rui que ninguém conhecia.
A freira continua:
- Não se dá tudo a alguém e sem mais nem menos o tira no momento seguinte.
Rui olha novamente pra seus parentes e amigos. Todos estavam se divertindo com aquela cena toda. Era como uma vingança pela rabugice dele.
 
Ele então se lembra da primeira vez em que vira aquela freira e lhe pedira permissão para uma pequena apresentação para as crianças. Rui mandara fazer um pequeno calhambeque, elétrico, com as rodas fora de eixo, de forma que chacoalhava todo ao andar, enquanto uma catraca embutida movia hastes de metal, produzindo bastante barulho, e vez ou outra, espoletas ruidosas, imitando estouros no motor. Enquanto o Buffet que ele contratara descarregava a van para a pequena ceia, ele inicia uma cena que passaria a ser a marca registrada dele, sempre que aparecia por ali. Ele entra no pátio, “dirigindo” aquela forreca, causando uma balburdia como nunca visto por ali. Para próximo à pequena fonte d’água, aperta um botão e o capô da geringonça salta, soltando fumaça, seguido de um estrondo. De dentro sai ele, com uma peruca simulando uma careca, circundado por fios vermelhos. Rosto pintado de branco e, nos lábios, contornos exagerados de um sorriso vermelho. No nariz, uma bola vermelha. Ao descer de seu possante, o palhaço soltava fumaça pelos fundilhos, indo correndo sentar-se na fonte d’água, apagando o “incêndio”. Irmã Conceição observava, incrédula ao que estava vendo. Imaginava ter aberto as portas do Lar Nossa Senhora Aparecida a um arruaceiro. As outras freiras observavam, admiradas. As crianças... Bem, as crianças, é fácil imaginar a reação delas ao verem um palhaço alterando a rotina daquele abrigo: foi uma festa!
 
Sarrafinho não tinha limites. Naquela situação, transformava-se totalmente em uma criança. Libertava-se do jeito sério de Rui. Vez ou outra era necessário a intervenção de Irmã Conceição, e não raras vezes, posto de castigo. Uma vez fora colocado de castigo, ajoelhado sobre grãos de milho. Meia hora depois, quando liberado, ele se levanta e exibe-se para a criançada batendo na placa de metal sobre sua calça, à altura do joelho. As outras freias divertiam-se com a molecagem de Sarrafinho. Irmã Conceição tolerava porque a cada aparição dele era só alegria daquela criançada. “E depois, alguém tinha que ter alguma seriedade ali. Alguém tem que se impor.” – dizia sempre às outras.
 
- ... quanto a mim, Senhor Rui – Continua Irmã Conceição, tirando Rui de suas lembranças e impondo um tom que sabia provocar o brio dele – Pensa que é fácil pra mim também? Tenho que encarar todo dia os problemas, não só estruturais do orfanato, mas também os trazidos pelas crianças, como esse do qual está fugindo. Cada um tem sua história, e como bem sabe, uma mais triste que a outra. Não me é nada agradável, porém não recuso nenhuma; é essa minha missão. Recebo todas essas crianças que a sociedade recusa. Sempre ouço dizerem: “Não agüento mais essas freias... Só pensam em pedir donativos. Vivem bajulando os endinheirados, como interesseiras... Fazerem algo de útil não querem!” - Pois sim, Senhor Rui, sou desagradável sim, mas não inútil. Vocês recusam aquelas criaturas, pra não “incomodarem” a sociedade, e eu tenho que me virar pra dar carinho, alimento e educação. Como posso fazer tudo isso sem ajuda? Não recebo nenhuma remuneração extra pelo meu trabalho. Recebo uns trocados que mal dá pras despesas pessoais. Minhas posses são alguns caraminguás que se juntados todos não dá um tostão. Portanto tenho que pedir sim, perturbar mesmo, recorrer a quem pode, até conseguir algo pras minhas crianças. O lar Nossa Senhora Aparecida não é nenhum depósito de rejeitados, onde todos se livram do “incômodo”, esquecendo-os lá. A sociedade é omissa, Senhor Rui.
 
Rui, sem perceber, volta às suas lembranças. Volta ao dia da comemoração de anos do Lar, onde Irmã Conceição discursava para um pequeno grupo de clérigos, incluindo o bispo, o presidente da Câmara Municipal, o qual vivia prometendo alguma verba sem nunca liberá-la, as crianças reunidas no pátio, e lógico, Sarrafinho que puxava o coro de palmas interrompendo-a a cada frase proferida, isso, quando não estava por trás a imitá-la tirando a atenção das crianças que riam de suas “tiradas”. A freira sabia que não adiantava reclamar; ele não iria parar de provocá-la. Era uma faceta dele que ignorava qualquer convenção de educação. Fazia troça até das imagens expostas no orfanato. Ali, ouvindo o discurso da freira, pouco depois ele começa a repuxar uma perna, semblante sereno, olhando pro nada. Ela já vira aquela cena antes. “Não. Ele não teria coragem”. Sarrafinho enfia a mão no bolso e logo ouve-se o ruído estridente do pum. “Ele teve”. As crianças dão risadas. Irmã Conceição fica constrangida, diante de seus convidados e não pensa duas vezes em pegá-lo pela orelha e o conduzir à sala de orações, colocando-o de castigo. Ele coloca a mão no bolso e esguicha água pela lateral dos olhos, simulando choro. As crianças adoram. Ao término da cerimônia, ele é trazido à frente das crianças e recebe o sermão de sempre. E mais tarde, quando as crianças eram conduzidas ao dormitório, Sarrafinho tinha permissão pra ficar sozinho na sala de orações. Era um momento só dele. “O único momento de ‘lucidez’ daquela criatura” – dizia sempre Irmã Conceição. Ele voltava à seriedade e orava por cerca de meia hora. Vez ou outra ela conversava com ele ao final das orações. Depois ele ia embora deixando aquela bagunça toda pras freiras limparem.
 
- ... É por isso que eu acho, Senhor Rui, por mais que eu ache que vá me arrepender, que você não tem o direito de interromper o convívio com estas crianças. O garoto do “X”, da qual o Senhor covardemente fugiu...
- Não fui covarde. Apenas...
- Covarde sim, Senhor Rui. O que acha que passou pela cabeça daquela criança? Não chega o sofrimento por que passou, sem mais nem menos, a única pessoa que lhe chamou a atenção, alguém que poderia lhe trazer algum alento, resolve sumir, assim: “puf” – diz gesticulando. Esse garoto vê em Sarrafinho uma esperança de que tem algum valor. Por isso eu lhe peço: Não deixe que aquela alma se perca. O garoto do “X” precisa de alguém em quem se apoiar, que sirva de exemplo... Meu Deus, se é que Sarrafinho pode ser exemplo pra alguém, mas enfim, é o que mantém a lucidez do garoto.
 
Rui volta a viajar em seus pensamentos... O Garoto “X”... Pensava não ter de encontrá-lo novamente. Não sabia explicar o porquê, mas tinha medo apenas de imaginar o que o garoto havia passado. “Devo ser um covarde mesmo”. Quando Sarrafinho vira Daniel pela primeira vez, no intervalo de suas visitas, este já estava há alguns dias no orfanato. Garoto recluso, quase não falava, nem mesmo com as outras crianças. Num primeiro momento em que ele tentara conversar este respondia por monossílabos, reagindo como se estivesse acuado. Ao espaço de duas visitas seguintes, Sarrafinho pode tirar dele algumas palavras. Ele pergunta ao garoto:
- O que houve com sua mão? Ou melhor com seu dedo?
Daniel olha pra sua mão direita, elevada e espalmada à altura dos olhos. Faltava-lhe parte do indicador.
- Foi meu pai – responde ele – Ele enrolou um fio grosso de “pescar” até partir nas juntas, quando ele puxou... Arrancou um pedaço...
Sarrafinho é pego de surpresa pela resposta. Começa a perder o controle. Já não sabe mais quem estava ali: Rui ou Sarrafinho. Seus olhos começam a inundar. Ele chuta um canteiro de rosas, enfia a mão no bolso esguichando água que se misturavam às suas lágrimas.
Nas vezes seguintes, Sarrafinho procurou dar mais atenção àquele garoto. Não conseguia imaginar tanta crueldade com uma criança. Ainda mais praticada pelo próprio pai. Logo ouviu a criançada se referir a ele como o “X”. Ao indagar o porquê do apelido, ele fica sabendo a história toda de Daniel. Quando o pai “cortara” seu dedo, ele estava preso a uma armação em forma de “X”, pés, pulsos e cintura. O pai não puxara e arrancara o dedo. Quando o acharam, através de denúncias de vizinhos que ouviram lamentos, ele estava amarrado na estrutura, o dedo ainda amarrado com a linha de pesca, gangrenado. O cheiro da sala era insuportável, pelas fezes que lhe escorriam pelas roupas. O pai o havia abandonado naquela situação há quase quatro dias.
Este fato surpreende Sarrafinho novamente. Suas lágrimas misturam-se novamente aos esguichos d’água, como fosse uma brincadeira. De todas as histórias ouvidas daquelas crianças, aquela havia sido a mais brutal. Não conseguiria manter sua paz interior ouvindo tanta atrocidade sem poder fazer nada pra impedir; quando ali chegam, o fato já é consumado.
Ao final da visita, após suas orações, Irmã Conceição percebe nele algo diferente. Não diz nada.
Aquela fora sua última visita ao Lar Nossa Senhora Aparecida.
 
- ...Não é fugindo, Senhor Rui, que afugentamos nossos fantasmas. Não é virando o rosto pro lado que os problemas deixam de existir. Não é abandonando à própria sorte essas criaturas, nem passando o problema adiante que eles serão resolvidos. Se o “problema” – diz gesticulando, simulando aspas com os indicadores – veio até você, cabe a você resolvê-lo. Fechar os olhos não resolve nada! Não fuja! Não abandone!
- Diante daquilo tudo não soube o que fazer, como encarar aquela situação.
- Porque não agir como o que lhe manda o coração?
- Não saberia o que dizer ao garoto.
- Palavras são apenas mensageiras do que você trás aqui – diz encostando o indicador na testa de Sarrafinho – Se não souber o que dizer, não diga nada. Deixe o coração falar por você. Sua presença já é muito pra quem não tem nada.
 
Rui abaixa a cabeça. Ela continua:
 
- Antes de vir aqui passei no hospital. Disse àquela criança que você estaria lá ainda hoje pra levá-la de volta ao orfanato - Ele a olha assustado – Não me decepcione... Sarrafinho.
 
Rui ergue a cabeça, olha pra todos à sua volta. Já não via nas expressões deles, qualquer sentimento de deboche. Irmã Conceição continua:
 
- Aproveite e leve também seus amigos. Quem sabe aprendem algo útil... só pra variar.
 
Ela se vira, dá alguns passos, volta-se novamente para eles:
- Estou esperando! Todos vocês! – diz apontando o indicador a todos.
 
Ela sai. Rui olha pro relógio e vira-se pra sua esposa:
- Temos pouco tempo pra preparar tudo – Olha pra todos à sua volta – Vai ser uma festa e tanto.
 
Quando as espoletas de seu calhambeque estouraram na entrada do orfanato, outra explosão se ouviu no interior do orfanato: Todas as crianças gritam de alegria. Sarrafinho observa o sorriso delas, seus familiares alegres também. Como pudera passar pela cabeça de Rui se negar àquelas criaturas? Como pudera Rui ter existido, fazendo sombra em Sarrafinho?
 
Palmas, gritos, vivas. Isso alimentava a alma de Sarrafinho. Ele também estava lá: Daniel, o Garoto X, sorrindo e se enturmando com seus colegas. Sarrafinho sorri. Há pagamento melhor no mundo?
 
O espetáculo inicial se repete, com o calhambeque pegando fogo, estouros, Sarrafinho sentando-se no chafariz pra refrescar os fundilhos. A criançada faz a festa.
 
 
 
 
Walter Peixoto
34/06/2014

 
Walter Peixoto
Enviado por Walter Peixoto em 19/04/2015
Código do texto: T5212745
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