Sobre Sam

Sam acordou de mau humor naquele dia. Não que alguém fosse estranhar. Nem ela mesma.

Seus primeiros pensamentos giraram em torno de contas a pagar, trabalhos da faculdade e ansiedade pela expectativa de pegar mais um ônibus lotado para ir trabalhar. Mais uma vez ela teve que fazer um esforço quase sobre humano para se arrastar da cama para o banheiro.

Era sempre assim.

Pelo menos até que ela ligasse o chuveiro. Os primeiros pingos de água sobre sua cabeça sempre caiam como se fossem pequenas picadas de formiga... e depois de fazerem seu corpo se contrair quase numa explosão, tudo ficava mais agitado. Daí para frente era tomar café(o que soa estranho de se dizer, já que ela nunca bebia café), se enfiar em alguma roupa e sair correndo até o ponto de ônibus. Fazia o resto do caminho cochilando, mas sempre acordava uma ou duas paradas antes do ponto que descia. Era um timing inconsciente tão perfeito, que ela se questionava por que não podia ser assim com as outras coisas da vida... coisas mais importantes.

Acordada, mas ainda sonolenta, ela caminhava alguns metros para o prédio do escritório onde trabalhava. Dava bom dia ao porteiro, subia as escadas e então partia para a rotina de publicar textos de autores medianos e rejeitar autores realmente bons, por não fazerem o perfil da editora que a empregava. Por isso Sam se sentia realmente mal.

Mas a vida era assim e suas contas não iriam se pagar sozinhas. Só por isso continuava sendo uma megera literária e publicando textos que podiam ser menos interessantes do que uma bula de remédio.

De vez em quando ela deixava escapar um pouco do rigor profissional e ‘apostava’ em algum autor mais ousado e fora do que se esperava de sua editora. As vezes dava certo. As vezes seu editor chefe acabava com as esperanças de um pobre escritor suburbano tentando ser publicado.

Todo dia ela se sentava na poltrona em frente ao seu computador e caia de cabeça no trabalho.

Na hora do almoço engolia algum lanche na copa, fumava um cigarro no estacionamento e afundava novamente o serviço até as seis da noite.

E era novamente transito, aula na faculdade de jornalismo (a segunda que fazia, depois do curso de letras). Professores distantes, colegas de turma boçais demais, drogados demais, ou simplesmente ocupados demais para se virarem para o lado e repararem na vida de outra pessoa.

Quando voltava para casa, sempre depois das dez, ia anestesiada e hipnotizada pelas luzes dos carros na rua e dos postes.

O cabelo esvoaçava e seu olfato já nem mais diferenciava os cheiros contrastantes dos bairros ricos e pobres que ela atravessava.

Descia do ônibus e às vezes parava em alguma lanchonete para comer algo bem gorduroso antes de chegar em casa.

Sam nunca tinha vontade de cozinhar de noite.

Quando abria a porta do seu apartamento, só conseguia imaginar a água quente do chuveiro e o abraço morno de seu colchão.

Isso só mudava nos fins de semana. Que era quando Sam se dava o direito de ser algo diferente. Conhecera todos os bares, beijara umas tantas bocas e sorrira sorrisos que nem achava que tinha dentro de si. Também já chorara, e havia dias que pensou que nem toda a bebida do mundo seria capaz de fazê-la esquecer.

Se esquecer.

Os domingos se arrastavam em preguiça e ressaca. E era frequente que só no fim da tarde que ela se sentisse como algo parecido com um ser humano. Então assistia algum desenho animado no sofá. Olhava o horário no telefone celular e esperava ansiosa.

Quase sempre ele vinha nos domingos.

Se Sam tinha medo de uma coisa, era do amor, e de todo o otimismo que ele trazia. Apaixonada, ela flutuava, e às vezes subia tão alto que era tomada de repente por um medo de cair. Esse medo da queda a fez viver no chão por tanto tempo, que ela chegou a esquecer que podia voar. Mas agora sentia algo dentro de si querendo levantar voo.

Não lembrava como tudo havia começado, mas um dia se viu nos braços de R., se perguntando quando iria vê-lo de novo. E então a ansiedade veio e o medo que aqueles encontros fossem transformá-la. Ela sentia que um romance não se encaixava no atual estado da sua vida.

Quando ele entrava pela casa, barulhento e largando coisas fora de lugar Sam tinha vontade de matá-lo. Mas então ele a tomava nos braços e perguntava como tinha sido o seu dia. Ela se via respondendo, desarmada, e logo estavam na cama conversando sobre tudo quanto é tipo de assunto.

“O amor pode aparecer de várias formas, e você não vai poder fugir dele pra sempre Sam.” Ele dizia, como se amar fosse a coisa mais fácil do mundo para ele.

Apesar de tentar feri-lo com seus “espinhos” ocasionalmente, Sam sabia que aquilo era só uma forma de tentar se manter no chão.

Não ia poder fazer aquilo para sempre. E quando ele ia embora, chateado, ela quase engasgava com a culpa e o arrependimento.

Adormeceu então, submersa em seus próprios pensamentos e acordou com o barulho da porta. Ele havia chegado e ela sorriu, ansiosa para voar mais um pouquinho.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 01/07/2015
Reeditado em 01/07/2015
Código do texto: T5296542
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