Força

Antonio e Miguel eram amigos inseparáveis. Separados apenas quando um optava por uma e outro por outra, para irem à cama, após as festas, geralmente, no pub da ilha. Geralmente, nem nesses momentos se separavam. Em certa seleção de mestrado em Psicologia Institucional chegou à ilha uma moça de saia longa hippie e cabelos curtos encaracolados que deixavam em evidência a nuca morena e o piercing no nariz. Antonio, militante de esquerda e egresso há pouco no mestrado em História, não tardou em perceber a revolução que Ana estava a fazer em seu campus. Miguel, poeta e boêmio, preocupado apenas com discursos de liberdade e desprendimento, notou, tão logo, o encarceramento que Ana lhe causara. Diferentemente de como geralmente faziam após as festas no pub da ilha, Antonio e Miguel se separam. Ana achara o jeito apaixonado, crítico, duro, de Antonio um bom motivo para se separar de sua saia hippie naquela noite. Miguel, exaltador da liberdade e desprendimento, sentiu o bloqueio de não conseguir improvisar uns versos para ter entregue num guardanapo para a moça. Passam-se anos e Ana vira doutora em Psicologia, Antonio diretor do sindicato dos professores e Miguel compra o pub da ilha, estando em seu quarto livro de poesias. Após tempos distantes, Ana, que passara a questionar o jeito de Antonio por em tudo ver conflito, geralmente de classes, passou a enxergar os desprendimentos e liberdade que há nas contingências da vida. Foi após uma crise no relacionamento que ela voltou ao início de tudo, no pub, com as amigas. Após anos, reviu Miguel, que, desta vez, em versos, elogiou sua saia, desejando-lhe nua. Ana sentiu-se envolta no território de Miguel naquela noite. No auge de seu conflito, ao procurar Ana, Antonio, que desta vez não enxergou o conflito de classes, avistou Ana e Miguel deleitando-se sexualmente nos fundos do pub. Antonio, sujeito apaixonado, duro, crítico, lembrou que, geralmente, nem nesses momentos os dois se separavam. Geralmente, Antonio gritaria uma palavra de ordem, endureceria o peito e partiria para o derradeiro confronto do corpo contra a ordem. Subtmente, entretanto, desfez a cisudez dos maxilares, desarmou o enrrijecer da testa. Não conseguiu ordenar ao corpo. Estático, mole, sem qualquer reação abrupta, Miguel e Ana não viram outro homem tão forte na vida. E nunca mais se separaram*.

*Permitam-me uma explicação semântica. A maior expressão de que passei de um pseudo-escritor romântico, idealista, dualista, para um pragmático, materialista, realista, é me permitir finalizar este conto com um "e nunca mais se separaram", à exemplo do "foram felizes para sempre". Não há futuro, se não enquanto projeções - e assim e por isso mesmo - irreais do presente. Gostem ou não, meus contos acabam neles mesmos e, por isso, a liberdade de conter eternidades.

Lucian Rodrigues
Enviado por Lucian Rodrigues em 31/07/2015
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