Makalael

- Sabem por que Deus é melhor do que todos vocês? - interrogou-lhes Makalael, ainda antes da criação do mundo, perto do rio, enquanto os outros anjos, distraídos, lavavam-se. - É que ele é bom e justo.

Os anjos entreolhavam-se, impressionados com as palavras bonitas e reveladoras que saiam da boca do belo jovem. Não era por acaso que ele tinha a fama de sábio.

- O que é isso? - perguntaram-lhe.

- Isso o quê?

- Ser bom e justo.

- Bem, ser bom é fazer com que os outros sejam felizes, independentemente deles merecerem. Ser justo é dar a cada um o que merece.

Os atentos ouvintes não conseguiram compreendê-lo. Confundiam-se. Pareciam ser conceitos totalmente contraditórios. Deveria ser por certo algo muito profundo para as suas limitadas mentes, julgaram.

- Mas que besteira - disse Miguel, saindo do rio e secando-se. - Estas palavras sequer existem. Eu vivo ao lado de Deus, perto do seu grande trono, e nunca as ouvi por todos estes séculos. Como poderia não as ter pronunciado?

Miguel, totalmente incrédulo, voou até a biblioteca celestial, trouxe um dicionário e assentou-o no meio deles.

- Vejam! - disse, procurando as tais palavras nele com o dedinho. - Como eu disse, estas palavras não existem. Se estas palavras fossem realmente tão importantes, Deus não iria esquecer-se delas.

- Eu juro! - exclamou Makalael, astuciosamente. - Os dicionários não são dignos de tê-las, são palavras indescritíveis. Bondade e justiça. Deus não pode ser definido por nenhum dicionário, muito menos as suas principais virtudes. Se não acreditam no que lhes digo, pois que perguntem agora mesmo a ele.

- Tolo! - repreendeu-lhe Miguel, com olhar desdenhoso. - Sabes bem que não se faz perguntas a Deus - depois se afastou, indignado.

- Sejam, pois, queridos irmão, bondosos e justos! Apenas assim serão tão maravilhosos quanto Deus. Eu os ensinarei a ser assim. Acrescentarei tais palavras aos dicionários, embora os dicionários não mereçam... Será um ato de bondade para com os dicionários e para com todos vocês.

Makalael tinha um talento excepcional para discursos e aquele era certamente mais um discurso impressionante. Os anjos, todavia, não tinham ideia do que ele estava querendo dizer com aquilo tudo, mas a possibilidade de serem como Deus parecia-lhes, ainda assim, uma proposta muito tentadora.

- Nós não entendemos, Makalael - disseram-lhe os anjos, depois de muito tempo recebendo as suas orientações, pois com o passar dos dias se enfastiaram. - , mas você diz que devemos ser bons e não é bom. Parece-nos que só exige bondade quando esta seria para si mesmo e que só é justo quando a justiça lhe traz algum benefício. Somos nós que fazemos todos os trabalhos enquanto você passa o dia todo deitado. Se realmente devemos ser bons com você, independentemente de você merecer, não teremos mais vida própria, sentimo-nos como se fôssemos seus escravos. Estamos quase convencidos de que Miguel estava certo e de que tudo não passa de um engodo da sua parte para aproveitar-se de nós. Não há mais espaço aqui para você.

- Ah, danem-se - respondeu o jovem, em seguida se levantou de sua rede, arrumou as suas coisas e, do seu modo, despediu-se. - Eu já estava cansado deste lugar mesmo, seus insuportáveis.

Makalael, pode-se dizer, é o nome que se dá aquele demônio desatento, perdido em razão de toda a burocracia celeste, e que em uma de suas muitas reencarnações, encarna, por acaso, no corpo de um anjo. Este é um evento deveras raríssimo, quase inexistente, entretanto, ainda me lembro da última vez que algo assim ocorreu.

Makalael não se adaptou ao céu nem ao inferno. Veio, portanto, morar na terra, entre os homens mortais. Ainda na infância, vivia arrancando as penas dos outros anjinhos; já na adolescência, tomado por um espírito revolucionário, exigia uma metodologia mais criteriosa para as torturas no inferno.

- Não. Vocês não podem infligir a este homem a mesma tortura que infligem aquele outro. Este foi um pagão, mas aquele era um estuprador insano. Devem torturar mais o estuprador que o pagão.

- Temos apenas o prazer em torturar, pouco importa se somos metódicos ou não.

- Eu não posso permitir uma coisa destas. Vejam os gráficos nestas pranchetas. Devemos fazer deste jeito.

- Não usamos gráficos aqui no inferno, rapaz. Queimamos tudo aqui, inclusive os gráficos.

- Pois, passarão a usá-los.

Makalael travou inúmeras revoluções no inferno antes de ter sido finalmente expulso de lá. Liderou um pequeno grupo que estava insatisfeito com a administração e que tinha como interesse mudanças imediatas em suas estruturas. Vindo à Terra, sentiu-se muito bem recebido. Rapidamente se tornou um político de renome. Antes de se envolver com a política, no entanto, fez muito sucesso como apresentador em um programa criminalista. As pessoas gostavam dele, principalmente as mulheres. O rapaz não demorou muito tempo para se envolver em escândalos sexuais. Com os escândalos sexuais acabou ganhando também a apreciação definitiva dos homens.

- Desculpem-nos, senhores. Há seis meses não há nenhum assassinato. Não temos notícias trágicas no dia de hoje para lhes oferecer. Sei que gostam destas notícias na hora da janta, enquanto mastigam as carnes de bois e vacas inocentes. Por este motivo, e apenas por este motivo, não poderei narrar teatralmente uma nova atrocidade, mas diante desta impossibilidade iremos reprisar as maiores catástrofes que já aconteceram. Se divirtam, quer dizer, se informem.

- Bom dia, senhor - disse Makalael, durante o programa certa vez, dirigindo-se a um de seus câmeras, quando não tinha notícias trágicas para apresentar. - eu gostaria muito de cortar o seu braço. Acho-o desproporcional e costumo ter prazer em ver sangue. Poderia, por favor, dar-me este prazer?

- Claro que não! - disse o velho. - Você está louco?

- Como ousa chamá-lo de louco? - ouviu-se no auditório. - O rapaz foi tão educado contigo! Hoje em dia os jovens não são nenhum pouco educados com os velhos, principalmente um jovem tão ilustre!

- Deixe-o cortar o teu braço então! - retrucou o velho câmera.

- Se ele me pedisse com tamanha reverência e com estes olhos e voz tão doces, é certo que eu sentiria-me constrangido a cortá-lo. E qual é o problema? Tantas pessoas vivem sem braços. É um enorme desrespeito, da sua parte, dizer que há problema em ser uma pessoa sem braço.

- Desculpem-me! - exclamou o velho, chorando, cobrindo o rosto com as mãos. - Ele realmente foi muito cordial, poderia até ter pedido para cortar os dois braços, mas pediu para cortar apenas um. É tão elegante, parece um rei. E que voz mansa, é como a voz de um cordeiro! Podem cortá-lo! Desculpe-me! - exclamou, ajoelhando-se aos seus pés. - Desculpe-me, senhor!

- Não se atormente, bom homem - falou Makalael, com um sorriso sereno na face. - É perfeitamente compreensível que as pessoas cometam erros em suas vidas. Eu o perdoo!

O rapaz o abraçou e todas as pessoas presentes no palco começaram a aplaudi-lo, choravam emocionadas e se abraçavam. "Nossa! Como ele é misericordioso!" - diziam elas - "Ah, se todos fossem como ele!" Passou-se a se dizer que aquele momento, curto, de apenas trinta e cinco minutos, foram os trinta e cinco minutos mais bonitos da história da humanidade.

Makalael cantava como ninguém. Os pássaros silenciavam-se para ouvi-lo e até mesmo as cachoeiras, de súbito, emudeciam. Quando se tornou governador do mundo, depois de muita insistência por parte dos seres humanos, passava a maior parte do seu tempo cantando. Apresentava-se diariamente na televisão para cantar alguma composição de sua autoria. Os corações enchiam-se de fantasias à simples menção de sua cantoria. Certo dia, entediado, olhou pela janela de sua suíte e avistou uma bela moça, despreocupada, sentada no banco da praça. Apaixonou-se.

Chamava-se Celina. A moça imediatamente deslumbrou-se com a beleza robusta do rapaz. Makalael, da sua parte, só falava nela. Era Celina pra cá, Celina pra lá. Logo todas as mulheres passaram a sentir ciúmes dela. Para falar a verdade, até os homens sentiam um pouco e eu, posso dizer que, também era um deles. A voz de Makalael passou a ser apenas dela, pois eram para a sua amada todas as suas composições. Neste período, ele esteve muito inspirado, chegou a compor, sem dificuldade, mil canções toda semana. Sem contar as poesias e as pinturas à óleo que fazia de Celina. Dentro de alguns meses, entretanto, Celina adoeceu e não demorou muito para que logo falecesse. Havia muito tempo que Makalael não visitava o céu, mas sentiu-se fortemente inclinado a ir até lá procurar por ela. Estava desiludido, não custava nada tentar. Todavia, foi barrado assim que tentou atravessar os portões celestiais.

- Você não pode entrar aqui, Makalael. Já foi expulso uma vez e, lembre-se, não se é expulso do céu mais do que uma vez.

- Se me permitirem ver Celina, apenas uma olhadela, uma só, eu lhes ensinarei um modo de salvarem toda a humanidade do inferno. Não é isso o que Deus apetece e desejam as suas caridosas almas? Não dizem as Sagradas Escrituras que Deus não tem prazer na morte do ímpio? Pois bem, poderei mostrar-lhes meu modo.

Os anjos novamente se sentiram profundamente seduzidos diante da possibilidade de oferecerem a Deus, desejoso pela salvação de toda a humanidade, um meio de conquistar o seu eterno objetivo. Miguel, todavia, como era seu costume, adotou enorme ceticismo e, assim como Pilatos, lavou as mãos e eximiu-se de toda e qualquer responsabilidade.

- "Das crianças é o reino dos céus." - principiou ele, após pigarrear - Portanto, basta apenas que as pessoas morram na fase infantil para que sejam salvas. Isso pode ser feito de forma totalmente indolor, talvez antes mesmo da formação de certas terminações nervosas ou como se fosse usada alguma espécie de inibidor, quem sabe uma anestesia. Quanto às pessoas que já se tornaram adultas ou que já morreram na maturidade, o caso não está totalmente perdido, elas poderão reencarnar novamente, no corpo de uma criança mesmo, e morrerem no estado de graça, a fim de conseguirem de igual modo a almejada salvação. Levando em conta isso tudo, a única alteração que deve ser feita na ortodoxia, extremamente sutil, é a inclusão da doutrina reencarnatória. É uma teoria universalista consistente baseada em um tripé doutrinário; uma relação entre conceitos como "ideal infantil", "corpo incorruptível" e, por fim, "reencarnação"

Todos ficaram abismados com aquela inusitada resposta, inclusive Miguel, que se retorcia na tentativa vã de encontrar em sua proposta alguma dificuldade. Estava claro que Makalael havia definitivamente resolvido o emblemático problema e assim, como foi-lhe prometido, pode morar novamente no céu, ao lado de Celina, sua eterna e doce amada. Quanto à sua proposta, ela se chama resolução 186PX-42, e a mesma ainda tramita entre tantas outras resoluções, até o dia em que haverá de ser julgada.

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