Natureza morta

Ela só tinha olhos e ouvidos para seu gato amarelo e suas hortênsias azuis, enquanto eu me ocupava das outras coisas que não importavam muito – o aluguel, a água e a luz, a comida na mesa e o plano de saúde. Da nossa saúde, a emocional e a sexual, jamais falávamos, já que estava implícita nas coisas que não importavam e que eu provia com minha ação e meu silêncio, alternados em momentos adequados. Funcionava perfeitamente, como engrenagens bem lubrificadas de um relógio de parede para o qual ninguém jamais olharia, inútil que era.

Entre nós sabíamos, ah se sabíamos, que as nossas vidas eram outras. Ela, seus gatos e hortênsias, o jardim e suas pedras - além do consultório e as histórias folhetinescas das mulheres problemáticas que o frequentavam, um ou outro paciente macho com quem passava mais tempo no divã, e os livros, os muitos livros nos quais ela mergulhava de corpo e alma em todo seu tempo livre. E era um tempo inclusive largo, pois que nem filhos tivemos. E eu, à parte as comezinhas providências, meus alunos e o futebol, tinha também Anette, minha outra vida real, aquela que me trazia à tona quando eu estava afundando. Ou que às vezes me afundava no lodo mais escuro e profundo para me fazer perder o ar e emergir afobado, sem fôlego, na esperança vã de me fazer acordar do sonho que ela achava que não era vida, essa, a minha vida à parte, perfeita e sem descaminhos.

As pessoas nos olhavam enviesado, com indignação ou inveja, por termos aquela placidez tão bem construída e nenhuma discordância, sendo que todos sabiam de nossas vidas paralelas, ambas – a que vivíamos juntos e a que levávamos em separado, sem dramas nem cenas. Era como um acordo silencioso, para o qual não havia mesmo necessidade nenhuma de palavras: se um dia elas fossem ditas, poderiam fazer ruir aquele equilíbrio tácito em que vivíamos, pois resvalariam na vida comum e desordenada, beirando o caos, que as pessoas insistem em viver. Nós, não. Entre nós, tudo era perfeito. Não havia paixão e por isso nada de irracionalidade, não havia sequer amor e, portanto, nada de cenas piegas.

Jamais nos perguntamos, entre outras coisas, até onde iriamos em nossa vida assim construída, pois, cá entre nós, sabíamos que seria eterna desde que nenhum de nós quebrasse o silêncio. E assim foi feito até o dia em que Anette resolveu, num arroubo de ciúme, aparecer em casa num daqueles momentos em que eu, na sala, assistindo ao futebol, bebericava meu uísque com gelo, enquanto ela lia Umberto Eco sentada à mesinha da varanda, um prato de uvas à frente, entre suas flores azuis e o felino que ronronava, aquecido, em seu colo.

Não posso dizer que me surpreendi quando abri a porta. Era tão surreal e absurdo que parecia uma miragem, um devaneio. Da mesma forma, quando, lá da varanda, ela baixou os óculos de leitura e olhou para Anette, lívida, de pé junto à porta, nenhuma expressão se notava em seu rosto. Era como se estivesse olhando para a chaleira, esperando a água ferver para o chá. O gato nem sequer levantou a cabeça: continuou seu semissono no colo confortável da dona.

Talvez Anette tenha se espantado mais que nós pela ausência de reação de ambos. Olhava seguidamente para mim e para ela, olhos muito abertos, e percebia-se suas mãos úmidas e geladas, sem que fosse necessário tocá-las. Sua respiração tornou-se ofegante e ela ficou sem reação. As muitas rugas de tensão em seu rosto foram-se suavizando; ela relaxou e, após alguns minutos assim, estática, deu meia volta e saiu, silenciosamente impossível como havia entrado.

Fechei a porta e olhei sobressaltado para ela, aguardando sua reação e temeroso de que nossa paz tão bem construída finalmente se desmanchasse sob uma torrente de palavras. Ela tinha os olhos fixos em mim de uma forma muito profunda, como se investigasse até minhas vidas passadas. E depois de longos minutos de silêncio profundo disse, voz rouca, com uma gravidade que poucas vezes havia percebido em sua fala:

- Espero que isso não mais se repita.

Recolocou os óculos na posição original, baixou os olhos e voltou à leitura. Quedei-me absorto, admirando aquela cena digna de um quadro: a imobilidade dela, concentrada em seu livro, com o gato inerte como morto em seu colo; o prato de uvas, as pedras que ladeavam os belos vasos de hortênsias... Se fosse pintor, correria a apanhar tela e pincéis, pois, à parte o azul vibrante das flores, estava ali uma natureza morta.

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Com meus agradecimentos aos amigos e escritores Fernando Cyrino pelas dicas, principalmente sobre o fechamento e o título; e Cirineu Pereira pelas sugestões e correções.

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Este texto faz parte do Exercício Criativo "Cá entre nós"

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