RETRATO INFANTIL

Houve um tempo que eu gostava de ouvir a melodia dos anjos, sem me preocupar com as complicações do mundo. (Houve um tempo, decerto houve.) Tais melodias me diziam que eu poderia ser o que quisesse no futuro e diziam mais, que o mundo era meu e a medida que acreditei nisto o mundo passou a ser realmente meu e como dono, fazia dele o que quisesse: podia usá-lo, empenhá-lo, vendê-lo, guardar o dinheiro no banco, comprar um melhor do que este, mas eu não queria vendê-lo e sim possui-lo como a pedra mais rara que existia na minha coleção de pedras. (Pensava eu ter uma coleção de pedras mágicas, que falavam comigo todos os dias, só mais tarde vim perceber que era eu que falava com elas, só mais tarde vim perceber que eu tinha uma coleção de pedras bonitas). Eu podia mudar o meu mundo, o tinha em minhas mãos, podia ter feito muitas coisas por ele, podia polir a sua superfície com minha flanela, mas seria apenas um mundo brilhante, podia ter jogado fora, podia melhorá-lo, podia ter partido ao meio e ver o que havia dentro, mas decidi não fazê-lo, preferi cobri-lo e guardá-lo no bolso da minha camisa.

Um dia quando eu fui para escola houve alguém que mexeu na minha bolsa e a deixou cair, mas exatamente naquele dia eu tinha deixado meu mundo na bolsa enquanto jogava bola com uns amigos, chegando na sala vi meu mundo partido em pedaços, havia saído pela fresta da bolsa entreaberta, vi rolando no chão os fragmentos movimentados pelo vai e vem dos alunos e gritei: parem estão pisando no meu mundo! Quanto mais gritava sem acreditar naquela cena, mais via meu sofrimento crescer na expressão refletida no olhar dos meus amigos, que me encaravam de maneira gélida. Corri e catei cada pedacinho espalhado no chão. Como a última nota de uma melodia, que tem a responsabilidade de deixar o público pensando na música enfeitando a canção, assim era cada pedaço por mim encontrado.

Levei para casa e tentei remendá-lo com cola, mas não deu certo, tentei várias maneiras, usei até as lágrimas que desciam no meu rosto, mas também não deram certo, descobri que não podia fazer nada pelo mundo e sim com ele. O que mais doeu foi que de tantas possibilidades do que fazer com meu mundo acabei guardando um sonho que estava em minha frente esmigalhado pelo medo.

Então resolvi pegar todos os pedaços e levar até um riacho, minha intenção seria o mar mais morava a muitos quilômetros dele, então cheguei junto do riacho e pedi para que ele conduzisse os pedaços do meu mundo quebrado a um riacho maior, que levasse a um rio, que levasse ao mar e pedi para que ele dissesse ao mar aceite estes fragmentos de um jovem que você talvez não se lembre, mas que admira seus mistérios e a sua imponência diante dos demais rios, riachos, lagoas, e lagos governado a todos e se impondo de maneira cabalmente até sobre a terra.

Deve fazer muito tempo que meu mundo chegou ao mar, hoje o retrato infantil ainda está guardado em minha mente apesar de ter me tornado adulto, eu não esqueci dele nenhum momento da minha vida, sempre me lembro dele nos momentos alegres e tristes, lembro como se lembra um grande amigo que partiu, como a um irmão, como a um pai. Nunca esquecerei que um dia eu escutei a voz dos anjos pedindo para eu vencer a vida não aceitando a morte de um mundo, mas criando e cultivando um mundo melhor em cada coração inclusive no meu.