CAMINHONEIRO

Elias nasceu predestinado a ser caminhoneiro.

Desde muito pequeno que os seus brinquedos eram caminhões que ele enchia com pedras, areia, pedaços de madeira, folhas secas, qualquer coisa que pudesse representar uma carga.

No chão de terra do quintal da casa em que morava num bairro afastado do centro ele desenhou a estrada para brincar com os seus caminhões carregados, com pontes, estreitamento de pista, e pátio para estacionamento ao lado do posto de combustível que ganhou de presente dos seus padrinhos.

Antes de completar dezoito anos de idade, Elias arranjou emprego numa transportadora só para poder ficar perto dos caminhões, fez amizades com o pessoal da oficina e com todos os caminhoneiros.

Apesar de gostar do trabalho junto com o controlista, de conferir nos manifestos de carga se todos os conhecimentos estavam lançados, de acompanhar de perto os carregamentos e descarregamentos das cargas dentro do armazém, a sua vontade mesmo era de ganhar as estradas em cima de um bichão daqueles.

E seu desejo foi realizado por seu Bernardo, um gaúcho já idoso, vermelhão, dono de uma gargalhada contagiante e da belíssima carreta preta, nove eixos, com capacidade para 74 toneladas que numa dessas conversas, quando o dia ainda nem clareou completamente, sentados em círculo nos mochinhos, enquanto mateavam, perguntou se Elias queria ir com ele até o Rio Grande.

O convite foi aceito na hora e a encarregada do pessoal da transportadora não fez questão de antecipar em uma semana as férias de Elias.

Partiram na manhã seguinte antes que o sol tivesse iluminado totalmente o dia.

Com o caminhão carregado, somente parariam para o almoço e depois, ao cair da noite para o jantar e o descanso.

Pela previsão, essa rotina de viagem seria cumprida nos cinco dias da sua duração.

Na pequena mala apenas mudas de roupas e uma bolsinha com material de limpeza pessoal.

Na mão o conjunto para tomar chimarrão cujo costume aprendido com os caminhoneiros, Elias tinha incorporado totalmente.

O caminhão era uma beleza e de lá de cima da cabine, tudo parecia muito mais bonito.

Seu Bernardo era bom contador de causos e falou de todas as coisas que acontecem pelas muitas estradas desse Brasilzão, das encomendas perdidas para ladrões, dos furtos nos postos de descanso e do cachorro Sabugo, um vira lata sem cor definida que foi seu companheiro e vigia do caminhão por mais de quinze anos, desde a época em que ele tinha um FNM no início dos anos sessenta.

Falou também das histórias de assombração e das aperturas que a maioria dos viajantes passa com esses seres do outro mundo que vêm para a terra só para azucrinar os viajantes solitários.

Na noite do segundo dia, bem antes de chegar ao ponto de pouso, eles estavam naquele pedaço da BR 101 entre os Estados da Bahia e Minas Gerais, sempre muito problemático, sempre com acidentes, sempre com nevoeiro e retenções que só servem para atrasar a programação.

É pista simples, mal cuidada, com asfalto falhado, sem acostamento, em suma, um pedaço do inferno que o cão deixou cair do caminhão dele e não veio mais buscar.

A polícia rodoviária estava tentando socorrer os envolvidos no acidente, mas pela gravidade da coisa, possivelmente eles passariam a noite toda por ali. E para enganar a fome, resolveram tomar um amargo sentados nos mochinhos no lado direito do caminhão para não correrem o risco de serem atropelados por alguém que resolvesse furar o bloqueio em desabalada carreira.

A conversa sobre assombração, agora valorizada pelo cenário adequado, caminhão parado na beira da estrada, mato alto no entorno, luz fraca da lamparina de querosene prejudicada ainda mais pelo denso nevoeiro e com os ruídos advindos não se sabe de onde, faziam com que Elias sentisse tremor por todo o corpo e um estranho calafrio a correr pela espinha que lhe deixava os cabelos arrepiados quando notou, por trás de seu Bernardo, surgida do nada uma figura de mulher, cabelos longos, escuros como a noite, usando um vestido longo que quase se confundia com a cor da pele muito branca em contraste com os cabelos e o brilho dos olhos pelo reflexo da luz da lamparina pendurada num dos ganchos da carroceria.

Tal como sempre acontece nas histórias de assombração, a mulher queria uma carona até o próximo povoado...

GLOSSÁRIO:

Amargo - chimarrão

Mateavam - Matear, termo gaúcho para o hábito de tomar chimarrão

Mochinho - banco de três pernas com assento de couro