Espelho negro

 
“Para decepar a cabeça de Medusa sem se petrificar, Perseu se sustenta sobre o que há de mais leve, as nuvens e o vento; e dirige o olhar para aquilo que só pode se revelar por uma visão indireta, por uma imagem capturada no espelho.” (CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas - tradução Ivo Barroso - SP. 1ª edição. Companhia das Letras, 2002. Pág. 16).”
 
Eram aproximadamente nove e meia da noite quando cheguei à rodoviária, que fica numa parte sombria da cidade, próxima do porto. Não há nada que suscite claridade à sua volta; há somente imensos armazéns abandonados - os quais abrigam mendigos embaixo das marquises -, viadutos empoeirados e árvores cinzentas, que à noite são sombras.

Quase todos fugiam do centro, com pressa; afinal, era sexta-feira, dia em que todos querem deixar para trás o trabalho, a semana. Os que ficam, em bares e boates, se entorpecem e portanto também fogem, apesar de não o fazerem com o corpo. Nada é mais lúgubre e triste que o centro de uma grande cidade num fim de semana. Quase não há pessoas, só prédios, estruturas, concreto, semáforos que trocam de cor sem que ninguém os veja: ninguém espera, ninguém quer seguir.

No centro, o contraste entre o movimento da semana e o marasmo do fim de semana torna ainda mais densa a sensação de abandono. A solidão é uma criação humana: construímos, transformamos o ambiente para a vida; justamente por isso, quando abandonamos as estruturas criadas, a solidão emerge com intensidade proporcional ao tamanho do vazio.

Não provocam a mesma sensação de desolação uma floresta ou uma praia sem pessoas – os ambientes naturais se auto-integram -; mas um centro, com todas as suas enormes construções cheias de salas e janelas - milhares de janelas opacas, sem luz, sem vida -, é angustiante como a morte: é um grande corpo sem vida; um coração sem sangue. A atividade intensa dos dias úteis - milhares de pessoas que circulam como sangue nas calçadas e ruas - cessa abruptamente.

Tomei um café enquanto esperava a hora de embarcar. Julguei que essa seria uma das últimas vezes que voltaria a minha cidade natal. Fui avisado pela manhã sobre a morte de meu pai e seguia para o seu enterro. Chorei quando soube, mas ainda não sei se verti lágrimas pela morte dele ou pela constatação da minha; na verdade, ao me deparar com a morte de alguém, nunca sei se choro pela exibição mórbida do fim (que me lembra do meu fim), pela ausência daquele que se foi, ou pelos dois motivos.

Toda vez que viajava para minha cidade natal no último ônibus, sentava-me bem perto da janela e via no vidro a minha própria face olhando através de si mesma para a escuridão às margens da via. A luz, dentro do ônibus, e a escuridão da estrada, delimitadas pela tênue película do vidro, formavam um espelho, no qual pairava meu etéreo reflexo, projetado entre silhuetas sombrias e disformes de árvores e montanhas.

Raramente passavam outros veículos nesta estrada a essa hora da noite; mas, quando chovia, e outro automóvel jogava sua luz em direção ao ônibus, as gotas d´água estilhaçadas e suspensas, presas ao vidro, fragmentam a luz lançada, transformando-se num céu estrelado, no qual cada gota era um corpo celeste brilhando ao refletir a luz emprestada. Creio que era uma compensação oferecida pela chuva, que encobria de nuvens o céu e portanto se sentia obrigada a criar outro firmamento e outras estrelas.

Todavia, a visão desta constelação era fugaz: as gotas, depois que passava a luz, permaneciam suspensas e imóveis mas sem brilho. Fulgurava a galáxia num instante e apagava-se noutro. À medida que o astro transitório - farol de outro veículo - se aproximava, a água ia se enchendo de luz; quando chegava ao ápice a iluminação, o fim já estava próximo: o momento de maior claridade era o último antes da total escuridão. Esvaia-se o sol que iluminava as estrelas líquidas, esvaia-se o brilho refletido.

Uma noite de lua cheia mudava toda a viagem. O luar azul transformava em penumbra a sombra da noite, tornando visíveis árvores, margens e montanhas azuladas, que recortam o horizonte. Nestas noites sempre dormia e sonhava que a luz interna havia sido apagada e o luar então, livre, atravessava a janela e deitava sobre mim o seu azul, que não deixa de ser o reflexo do brilho do sol.

A volta para casa era sempre assim. E do espelho negro da noite surgia a imagem do passado, que emergia suspensa na escuridão: lembrava-me do meu pai, que, abismado, procurava o reflexo de sua face na obscuridade fluida.

Quando criança, não havia em casa um único espelho ou qualquer metal reluzente que pudesse o substituir, nem sequer um vidro em que pudéssemos nos ver refletidos. Portanto, meu pai, para se barbear, enchia um tabuleiro enferrujado - como todos os metais que tínhamos – de café velho e este era nosso espelho. Guardávamos todo o café que sobrava numa velha chaleira sem cabo, ao lado do fogão à lenha, com um velho trapo por cima para evitar que os insetos, iludidos pelo reflexo de alguma luz, ali mergulhassem.

Uma vez por semana, aos domingos geralmente, meu pai ia até o quintal, sob o grande tamarineiro, e ensaboava o rosto com sabão de cinzas; em seguida, sentado, com o tronco e a cabeça projetados sobre o tabuleiro-espelho, que ficava num pequeno monte de pedras, começava a passar no rosto a navalha opaca. Quando chovia, meu pai se barbeava na cozinha, perto do fogo e da janela, sob a luz que por ali penetrava, pois lá fora os pingos da chuva tornariam instável a superfície fluida de nosso espelho.

Muita vez, no verão principalmente, meu pai, ao preparar-se para se barbear, me chamava e pedia que eu afastasse as borboletas, abelhas e besouros que ao verem o sol refletido em nosso sombrio espelho voavam para o café. Cada inseto que caía e se debatia ao encontrar-se com a viscosa e falsa luz, turbava o reflexo de meu pai, que os tirava com gestos rápidos, não por compaixão mas para poder ver se formar placidamente seu rosto. O cuidado era com a imagem, não com as insignificantes existências.

Quando ele terminava, deixava-me brincar de desviar o reflexo do sol que batia no café; manejando suavemente o tabuleiro eu projetava a luz na árvore, nos galhos e nos meus olhos, a fim de sentir a força da luminosidade.

Um dia levei para casa um espelho de verdade - um velho pedaço disforme -, que achei no chão, como um resto de lixo, quando fui à cidade. Assim que cheguei, corri até meu pai e lhe disse, com as mãos pra trás, que havia trazido uma surpresa. “Mostra logo”, disse secamente ele, que estava sentado no degrau da porta da cozinha.

Estendi-lhe o espelho; ele o pegou, e enquanto o analisava, dei a volta e coloquei-me atrás dele, com a face sobre seu rígido ombro, na tentativa de vislumbrar nossas imagens dentro do espelho. Porém só consegui ver-me a mim. A imagem do meu pai não se reproduzia no espelho: era como se a claridade daquele espelho fosse forte demais para refletir aquele rosto, que tantas vezes pairou sobre a escuridão.

Ficamos em silêncio à espera da imagem, até que me afastei e, em seguida, retornei, trazendo-lhe o espelho negro: meu pai olhou-se e, ainda em silêncio, deu-me o pequeno e luminoso espelho, o qual escondi nas minhas coisas. Eu só me olhava naquele espelho quando estava sozinho e mesmo assim o fazia temendo que meu pai chegasse de repente e me encontrasse a me ver furtivamente.

Saí de casa aos quatorze para trabalhar na cidade. Acho que o maior vínculo com o meu passado é esta procura incessante de minha imagem nos espelhos sombrios. Em cada xícara de café fumegante, em cada vitrine apagada, em cada carro fechado tentei me ver refletido.

As viagens de volta para casa eram sempre iguais. Na janela via meu reflexo e a escuridão da noite, e no reflexo de meus olhos revia meu passado, e a imagem escura e inconstante de meu pai. As estrelas, que insistiam em brilhar através da noite o do vidro, eram pingos de sabão que caiam da face de meu pai no café que lhe servia de espelho. Ou eram a primeira luz da manhã, que invadia pelas frestas da parede o cômodo escuro onde dormia quando criança. Aqueles furos por onde a luz entrava, assim que o sol nascia, sempre me deram a sensação de que dormia ao relento, sob o céu estrelado. Mas logo o sol se erguia, esplêndido, e com ele erguia-se também meu pai, e o dia se impunha.

Descer do ônibus na estrada, antes de o sol nascer, para seguir só, imerso na escuridão total, até minha antiga casa é como acordar de um sonho sem abrir os olhos, temendo que a noite já se tenha acabado.

Na indefinível hora que separa a noite do dia, cheguei ao portão de casa. Antes de entrar, porém, parei alguns segundos debaixo do tamarineiro. De lá avistei a janela e a luz inconstante que esta enquadrava. Avancei e entrei na sala, iluminada por velas. Os presentes vieram ter comigo e dar-me os pêsames.

Meu pai estava sobre a mesa, no centro do cômodo; fui até ele e chorei ao vê-lo inerte. Por mais que soubesse que tinha morrido desde ontem, somente vendo-o morto é que pude acreditar realmente. Sua expressão era tranqüila; mais tranqüila que a expressão que tinha enquanto dormia.

Pedi, com muita polidez, que todos saíssem por um minuto, pois gostaria de ficar a sós com o corpo. Assim que saíram, encostei a porta e, depois de certificar-me de que ninguém me observava, tirei a pequena lasca de espelho do bolso, para tentar ver a imagem do rosto de meu pai refletido nele - seu último reflexo.

Um sopro apagou as velas quando ergui o espelho. Ao colocá-lo no ângulo perfeito para revelar a face de meu pai, nada vi senão uma sombra. Fiquei alguns segundos ali, observando aquele reflexo negro, tentando fazer emergir alguma face definida. Quando olhei ao redor, uma constelação surgia suspensa em raios de sol que invadiam pelas frestas da parede: grãos de poeira navegavam lentamente pela luz. Ao olhar novamente para o espelho, agora procurando o meu reflexo, nada enxerguei.