Cinderela *

     O espetáculo tem início. Uma grua faz a tomada do estúdio em plano geral, diminuindo para um close na apresentadora, que adentra ao palco sob os aplausos da plateia, ensaiados minutos antes pela produção. A apresentadora, iluminada por holofotes frenéticos, inclina-se para o público em agradecimento enquanto a trilha sonora é concluída, voltando-se para a câmera 2:
     – Boa tarde, Brasil!!
     A apresentadora prontamente inicia a leitura das chamadas para as atrações do programa:
     – “Ela saiu de casa para morar com seu príncipe encantado”, “Ele guarda um terrível segredo de sua mulher há mais de vinte anos”, “Uma prima vai revelar para a outra por que seu noivo se atrasou em seu casamento”!... Eu sou Dália Perrault e estamos começando mais um programa Contos de Família!...
     Vira-se para a câmera 5 e prossegue:
     – Hoje começaremos com a comovente história de uma jovem sonhadora que acreditou em si mesma e venceu na vida. Nós convidamos para o palco... pode entrar... Cinderela Barros!
     A jovem adentra sob mais aplausos do auditório e toma seu assento pré-estabelecido dentre os vários disponíveis no palco.
     – Olá, Cinderela.
     – Olá – seguido de umas tímidas risadas nervosas.
     – Uau! Você é muito linda, sabia? – quebra o gelo a apresentadora. – Cinderela, Cinderela... Que nome diferente! Como surgiu este nome?
     – A minha mãe era fã da Cindy Crawford, e o meu pai era vidrado na Vampirela, aí ficou Cinderela!
     Risos.
     – Vamos conhecer a história da Cinderela...
     Um vídeo de uma atriz dramatizando a jovem é iniciado. Uma outra atriz narra o texto ao som de piano interpretando The Impossible Dream: “Dália, meu nome é Cinderela. Eu sempre fui uma menina esforçada e sorridente. Cresci com meus pais, que eram comerciantes de uma loja de confecções, no centro da cidade. Meus pais eram muito felizes, sempre carinhosos, atenciosos. Éramos uma família cheia de alegria e amor. Mas o destino... Ah, o destino, Dália!... O destino nos prega peças, e, um dia, minha dedicada mãe descobriu que tinha uma doença incurável, e morreu quando eu ainda era uma menina. Papai ficou muito arrasado, e eu não estava entendéindo por que a vida fizera aquilo com nossa unida família. Após alguns anos, papai conheceu uma mulher, que também estava sozinha. Eles começaram a se conhecer, a namorar, e o fogo do amor retornou ao coração de meu pai. Ah, Dália!... Eu fiquei tão feliz! Só pensava na felicidade de meu pai, que acabou se casando com esse seu novo amor. A minha nova mãe tinha duas filhas, e eu, na minha ingenuidade, achava que ganharia duas novas amigas, as irmãs que eu sempre sonhei. Mas, ah... o destino não parecia dar tréguas, e, meses depois, meu pai também veio a falecer, vítima de enfarto. E como se essa tristeza não bastasse, minha madrasta começou a gastar todo o dinheiro de meu pai para satisfazer as vontades de suas filhas, e começou a me tratar como um lixo, me obrigando a fazer as tarefas domésticas. Eu queria morrer de tristeza. Minhas irmãs zombavam de mim, e me desdenhavam, dizendo que eu não fazia parte da família. Um dia, houve uma festa de aniversário na nossa rua. O aniversariante havia convidado toda a vizinhança, mas minha madrasta disse que eu não seria bem-vinda lá e só iria envergonhar a todos, e me mandou limpar toda a casa só para me ofender ainda mais. Depois de ela e minhas irmãs saírem para a festa, eu me senti arrasada, completamente esquecida de tudo e de todos. Eu só queria que meus pais estivessem vivos, e tudo seria diferente. Foi então que eu tive uma visão. Do fundo de minha tristeza, apareceu-me diante de mim um anjo, todo de branco. O anjo me disse que eu precisava acreditar em mim mesma, que tudo em minha vida iria melhorar, bastava ter fé. E foi assim que minha vida começou a mudar...”.
     O vídeo é interrompido. A apresentadora torna sério seu semblante e encara a câmera 5. Entra uma trilha sonora de suspense. A plateia murmura duvidosa. A apresentadora volta-se para a jovem:
     – Cinderela, o que aconteceu? Você está me dizendo que viu um anjo?
     Breve pausa. Close na jovem.
     – Sim, Dália, eu vi um anjo.
     O auditório murmura mais surpreso.

     A apresentadora continua:
     – E o que aconteceu depois da visita desse anjo, Cinderela?
     – Eu... – a jovem é interrompida pela apresentadora.
     – Cinderela, espera um pouquinho. Não é só você que tem algo a dizer, não. Produção, manda entrar a madrasta.
​​​​​​​     A madrasta chega ao palco pelo lado oposto da jovem sob as vaias do público, e toma seu assento, sob uma trilha sonora acelerada. A apresentadora vira-se para a plateia, e em seguida fita a madrasta, que faz cara de desdém. A apresentadora dirige-se à mulher:
​​​​​​​     – Dona Barros, boa tarde. Como é que você trata sua enteada em casa?
​​​​​​​     – Ué, trato normal, como toda enteada. Trato como se ela fosse uma de minhas filhas, oras!
​​​​​​​     O auditório urra em descrédito, e começa a gritar: “Megera, megera!”.
​​​​​​​     – Dona Barros, por que a senhora proibiu só a Cinderela de ir para a festa?
​​​​​​​     – Eu, proibi?! Imagina! Ela até foi na festa! Todo mundo viu ela lá! Essa menina quer é chamar a atenção! Eu fui a única família dela depois que o pai dela morreu, ela devia é ter mais vergonha na cara, essa peste é uma ingrata!
​​​​​​​     – E você, que é uma vagabunda?! – grita Cinderela.
​​​​​​​     A plateia vai ao delírio.
​​​​​​​     – Calma, calma. Esse é um programa de família. Estamos aqui para compreender a situação de vocês. Cinderela, você foi à festa?
​​​​​​​     – Fui, claro. Essa bruxa aí está com inveja porque ela queria que uma das filhas dela ficasse com o aniversariante para dar o golpe do baú. O aniversariante, o Felipe, é rico, gente, ri-cô. Ela queria era deitar na grana! Mas se deu mal, porque o Felipe, ó, ficou comigo e quer se casar. Invejosa. Invejosa!
​​​​​​​     A plateia aplaude Cinderela, que sorri faceira, remexendo-se na cadeira. Alguns aplaudem de pé.
​​​​​​​     – Essa daí é uma biscate, foi ela que deu em cima dele – defende-se a madrasta.
​​​​​​​     A plateia urra ainda mais, mas parece dividida.
​​​​​​​     – Bom, gente... Héin, produção? Posso chamar?... Ãh, agora são os comerciais? Não?! Ah, pode chamar?... – faz suspense a apresentadora. Olha para Cinderela. Olha para a madrasta. – Produção, pode mandar entrar as irmãs da Cinderela!
​​​​​​​     A trilha sonora acelerada se repete na entrada das irmãs de Cinderela, que se assentam próximo à mãe. A mais agitada encara Cinderela, se levanta da cadeira e parte para cima dela. As duas começam a rolar no chão sob as palmas do auditório. Dois seguranças separam as duas, enquanto a apresentadora acalma a situação, ouvindo pelo comunicador de seu microfone auricular uma bronca do diretor do programa que exigia que o combinado fosse que a irmã lhe jogasse um balde de água e não que fosse para cima dela. A apresentadora escapa um “Certo, diretor” no ar, mas logo se recompõe e retoma o controle do programa.
​​​​​​​     A irmã de Cinderela retorna para o seu lugar. Cinderela se levanta do chão e procura por um pé de sua sandália que caíra enquanto as duas brigavam. A produtora, por trás das câmeras, acena para que a jovem pare de procurar pela sandália e se sente para que o programa evolua. A apresentadora vira para a irmã agressora e segue em frente:
​​​​​​​     – Menina, mas o que é isso!? Calma!... Boa tarde!
​​​​​​​     – Tarde mais ou menos, Dália.
​​​​​​​     – Me diga uma coisa, er...
​​​​​​​     – Griselda!
​​​​​​​     – Sim. Griselda, me diga uma coisa, por que você tem tanto ódio no coração assim pela Cinderela?
​​​​​​​     – Eu nunca gostei dessa... dessa Gata Borralheira!
​​​​​​​     – Nossa! Gata Borralheira? Que apelido é esse? Por que Gata Borralheira?
​​​​​​​     – Quando ela era criança ela fazia cocô nas calças, e aí o apelido pegou.
O auditório cai na gargalhada.
​​​​​​​     – Eu que inventei esse apelido, tá? – reivindica a outra irmã.
​​​​​​​     Cinderela começa a chorar.
​​​​​​​     – Isso é verdade, Cinderela? – a apresentadora maquia uma surpresa.
​​​​​​​     – Eu sofria de encoprese, tá!? Foi logo depois que meu pai morreu! Mas isso já passou. Graças à diretora da escola, que me encaminhou para uma psicóloga da prefeitura, eu hoje já superei isso.
​​​​​​​     Griselda começa a ritmar “Borralheira, borralheira!” e logo o auditório está cantando com ela. Cinderela morde os lábios, mas se recompõe. A apresentadora procura mudar a atenção de Griselda:
​​​​​​​     – Griselda, diz aí, você gosta do Felipe?
​​​​​​​     Griselda se desconcerta. O auditório assobia para ela, que enfatiza:
​​​​​​​     – Eu não gosto daquele mauricinho, não. Ele é muito certinho. E ele ainda se acha um príncipe, sabe?
​​​​​​​     – Ah, um príncipe! – pede explicações a apresentadora.
​​​​​​​     – É, ele é crente, sabe. Vive dizendo que é “filho do Rei”. Então ele se acha um príncipe, entendeu? Ridículo!
​​​​​​​     O auditório grita: “Invejosa, invejosa!”. Agora Cinderela está rindo.
​​​​​​​     A apresentadora acalma a plateia, volta-se para Cinderela, e sorri:
​​​​​​​     – Vamos chamar seu príncipe encantado? Felipe!! Pode entrar!
​​​​​​​     O jovem adentra ao palco elegantemente sob alguns gritos de “Gostoso!”. Ele se agacha, pega o pé da sandália que havia caído atrás de uma das cadeiras e o calça de volta em Cinderela, sob os murmúrios suspirantes da plateia, e senta-se na cadeira ao lado de sua amada. Sorridente, acena para a plateia, e saúda a apresentadora, que se dirige ao rapaz:
​​​​​​​     – E então, Felipe? Sai casamento, mesmo?
​​​​​​​     Felipe olha para Cinderela carinhosamente, pega em sua mão, e responde:
​​​​​​​     – Sim, Dália!
​​​​​​​     O público aplaude. A apresentadora continua:
​​​​​​​     – Vocês já têm data para o casamento?
​​​​​​​     – Final do mês, Dália.
​​​​​​​     – Você está certa do que quer, Cinderela?
​​​​​​​     – Ô! Seremos felizes para sempre!
​​​​​​​     – É isso o que vamos ver. Vamos conversar então com nossos especialistas convidados para o programa de hoje! Boa tarde, doutor Grimmão!
​​​​​​​     – Boa tarde, Dália, é sempre uma honra estar em seu programa – responde o especialista convidado, que se encontra acomodado na primeira fileira do auditório.
​​​​​​​     – Doutor Grimmão é psicólogo, sexólogo, e terapeuta familiar. Doutor Grimmão, o senhor acha que a Cinderela está ou não madura para um casamento?
​​​​​​​     – Olha, Dália, com todo o respeito, eu creio que esta jovem, haja vista os traumas que ela sofreu durante sua infância e devido ao autoritarismo de sua família legal atual, eu concluo que a Cinderela está se utilizando do casamento para sair de casa e se sentir emancipada, independente, além disso este rapaz é a primeira coisa realmente boa que ela vivenciou depois da morte de seus pais, e, portanto, pode estar muito iludida quanto às realidades do casamento, criando um mundo de fantasias e contos de fadas ao seu redor. Por outro lado, eu acredito no casamento, e essa pode ser uma experiência positiva para o casal, e finalizo dizendo que ela e seu companheiro são jovens e vão aprender muito ainda sobre a vida, e, em qualquer dificuldade, eu me disponho a atender este casal, sem despesa alguma, Dália!
​​​​​​​     O público aplaude. O casal diz que se ama e a apresentadora sorri para eles.
​​​​​​​     – Ô, Cinderela. Tem mais uma coisa que você gostaria de saber sobre sua vida depois do casamento? – incita a apresentadora.
​​​​​​​     – Mais alguma coisa...?! – Cinderela procura se lembrar rapidamente enquanto um contrarregra levanta por trás das câmeras um cartaz com os próximos assuntos, mostrando-o à Cinderela, que se recorda: – Ah, sim, quero sim, Dália. Eu quero saber... como fica a questão da herança de meus pais nessa história!
​​​​​​​     O auditório assobia para a madrasta, que torce os lábios e revira os olhos. A apresentadora se pronuncia:
​​​​​​​     – É verdade. E para essas questões nós convidamos ao programa o advogado especialista em herança e promotor da vara da família... Boa tarde, doutor Grimmaldo!
​​​​​​​     – Boa tarde, Dália. Agradeço o convite de sua produção.
​​​​​​​     – Só por curiosidade... o senhor e o doutor Grimmão são parentes? – pergunta a apresentadora, tirando risos do público.
​​​​​​​     – Ó, somos sim, Dália. Somos irmãos. Com esses nomes, é inevitável! Todos perguntam. Grimmaldo, Grimmão...!
​​​​​​​     – Os irmãos Grimm – mais risos. O diretor dá mais uma bronca na apresentadora, e pede que ela pare de fazer piadinhas infames e manda prosseguir com o roteiro. A apresentadora, então, retoma o assunto da herança. O advogado esclarece:
​​​​​​​     – Dália, a questão da herança é simples. Em primeira análise, para resumir, metade fica com a madrasta e metade fica com a Cinderela. Agora é preciso avaliar todos os bens para que a Cinderela reclame sua parte. É preciso que se chegue a um acordo.
​​​​​​​     – Amor, pede o Fusca. Eu adoro colecionar Fuscas – opina Felipe.
​​​​​​​     – Aquela lata velha cor de laranja horrível? Podem levar aquela... aquela abóbora! – desdenha a madrasta.
​​​​​​​     A produção inicia uma trilha de suspense. A apresentadora olha fixo para a câmera 2. Olha para as fichas em sua mão. E volta a olhar para a câmera. Olha para Cinderela. Olha para o auditório e torna a encarar Cinderela, e quebra o silêncio:
​​​​​​​     – Cinderela, e aquele anjo?... – a trilha de suspense cresce no estúdio.
​​​​​​​     A apresentadora continua:
​​​​​​​     – Nós trouxemos aqui no programa, hoje, a escritora de livros esotéricos e consultora espiritual, a madame Binha Zilá! Boa tarde, madame, sua bênção. Você ouviu bem a história da Cinderela?
​​​​​​​     – Axé, povo! Axé, Dália! Ouvi, sim. Deixa eu te falar, minha filha, quem foi que te visitou àquela noite da festa...
​​​​​​​     Close na Cinderela, que está com os olhos cheios de água. Uma legenda aparece embaixo da tela: “Ela nem desconfia quem é seu anjo da guarda”. A tela se divide em dois, na Cinderela e na esotérica, que continua pausadamente:
​​​​​​​     – O seu anjo da guarda, minha criança, é... é a sua querida e falecida mãe!...
​​​​​​​     Uma nova trilha acelerada é tocada. Cinderela chora de alegria e surpresa. De repente, a esotérica começa a sacudir, se levanta de sua cadeira, dá um giro, agita os ombros, ergue a cabeça e fala para Cinderela:
​​​​​​​     – Minha filha, não chore, não, minha nêga. Mamãe tá aqui, viste?
​​​​​​​     O auditório murmura surpreso e amedrontado. A apresentadora recebe uma chamada do diretor avisando que o programa tem que entrar para o intervalo, e que é preciso acelerar a programação. A apresentadora se dirige à esotérica:
​​​​​​​     – Zilá?!... Mãe da Cinderela!?... Você tem um recado para sua filha?...
​​​​​​​     – Tenho, dona mulher. Ô, filha, para você ser feliz no seu casamento você tem que vestir um vestido de noiva azul que está em promoção aqui no shopping da avenida. Mas se apresse, que a loja fechará à meia-noite!... Agora todo mundo tem que cantar pra eu subir! Todo mundo comigo: Alacadula, Migicobula, Bibity-Bobity-Boo,...
​​​​​​​     O auditório bate palmas e canta junto com a apresentadora:
​​​​​​​     – Bibity-Bobity, Bibity-Bobity, Bibity-Bobity...
​​​​​​​     – Boo!...– e senta, fatigada, a esotérica. Madame Zilá está de volta. A apresentadora retoma a palavra:
​​​​​​​     – Nossa, gente! Fiquei toda arrepiada, e vocês? Agora nós vamos para os comerciais e voltamos já-já com novos convidados. Família Barros, obrigada por participarem de mais um Contos de Família, e, Cinderela e Felipe, ó, se cuidem, tá? Um beijão pra vocês!
​​​​​​​     A família se retira do palco, sob os aplausos do auditório, holofotes, e sob uma trilha alegre estilo bossa-nova. A apresentadora ainda se dispõe de alguns segundos antes dos comerciais:
​​​​​​​     – E não percam! Hoje, no jornal das oito, com exclusividade, uma entrevista com o maníaco que invadiu uma casa, torturou e abusou sexualmente de uma senhora e sua neta, o guarda florestal José Lobo! Hoje, oito da noite. Você não pode perder! A gente já volta, Brasil, é só dois minutinhos, não saia daí!...

Publicado em “Mulheres e seus amores”, disponível aqui em formato E-Book.
Vitor Pereira Jr
Enviado por Vitor Pereira Jr em 16/11/2007
Reeditado em 15/09/2021
Código do texto: T739811
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