INTERMITÊNCIA, a separação dói

Daqui a pouco ela vai chegar. Se eu ainda a conheço, certamente vai querer me confundir, bagunçar minha vida com aquele jeitinho de menina carente e me enlouquecer com sua voz tenra de quem sabe o que fazer para ter tudo o que quer. Ah, como eu odeio essa mulher! Não, não odeio, pelo contrário, ainda a amo. Não posso assumir que ainda a amo. Se ela desconfiar disso, estou perdido. Não, não quero ser um joguete em suas mãos. Eu não posso me deixar seduzir por aquele olhar piedoso. Ela não pode me dobrar. E não vai! Diabos, por que aceitei que ela viesse aqui conversar comigo? Onde eu estava com a cabeça que não haveria nenhum problema? É claro, eu estava com a cabeça naqueles belos e pequenos seios rosados, naquelas coxas carnudas, naquela bundinha gostosa. Porra, meu pau sempre me trai quando a cabeça vacila. E se eu me deixar levar, amanhã acordo com ela ao lado, com uma puta dor de cabeça e a indecisão formada em minha vida. Mas ela vai chegar. Eu aceitei seu pedido. O que ela quer de mim? Por que agora?

— A campainha!

É ela! Preciso parar de tremer. Droga! Ela vai perceber que estou abalado. Como estou suando! Droga! Não está calor para suar desse jeito. Ela vai perceber que estou tenso e se aproveitará da minha fragilidade para conseguir o que quer de mim. Mas o que ela quer afinal? Calma, Roberto. Calma. Não vai ser um par de coxas, e seios, que vai fazer você parecer um menininho experimentando o amor pela primeira vez. Mantenha-se sereno. Almira é apenas uma mulher como qualquer outra, nada mais do que isso. Respire fundo. Mais uma vez, respire fundo.

— Boa noite.

Quem é essa mulher? Eu já a vi antes, mas quem é ela? O que quer, batendo à minha porta numa hora dessas?

— Boa noite.

— Eu sou sua nova vizinha, moro no apartamento aqui do lado.

Foda-se! Você pode ser a rainha da Inglaterra que não faz diferença nenhuma agora. Merda, me senti perdido sem nenhum motivo. O que essa idiota quer de mim?

— Desculpe incomodá-lo numa hora dessas. Sei que já está um pouco tarde, mas como o porteiro se enganou e entregou essas cartas em meu apartamento, eu achei que seria melhor entregá-las de uma vez para você, porque eu costumo ficar no trabalho o dia inteiro, por isso, se não for agora, dificilmente conseguiria em outro horário.

— Ah, sim. Obrigado. Esses idiotas da portaria vivem fazendo isso. Não se preocupe, não é a primeira vez que isso acontece, nem será a última.

— Poxa, é sério?

— Infelizmente, sim. Parece que eles têm algum problema com números. Não acertam nunca.

— Entendi. Isso é mesmo engraçado.

— Nem sempre é, mas na maioria das vezes dá para rir dos desenganos deles.

— É verdade. Sabe, eu sou nova no prédio e ainda não conheço ninguém por aqui. Pensei em beber uma taça ou duas de vinho, mas não gostaria de fazer isso sozinha. Por acaso você não gostaria de me acompanhar?

— Desculpa, querida, eu bem que gostaria muito de uma taça de vinho, mas estou um pouco ocupado agora. Quem sabe noutro dia?

— Tudo bem, fica para a próxima oportunidade.

— Certo.

— Boa noite, então. Desculpa por incomodá-lo, mais uma vez.

— Não foi nenhum incômodo, mas é que eu realmente estou ocupado agora. De qualquer forma, obrigado por me entregar as cartas, e também pelo convite, é claro.

— Tudo bem, não precisa se explicar. Mas não se esqueça de que você me deve uma taça de vinho.

— Certo, certo. Assim que eu puder, bato à sua porta com uma bela garrafa de vinho para a gente se conhecer melhor e espantar a sua solidão.

— Vou esperar... Roberto?!

— Que vergonha, nem perguntei seu nome.

— Ana Lúcia.

— Certo, Ana Lúcia, então está combinado. Assim que eu puder, a gente degusta um bom vinho. Agora, eu realmente tenho que ir, porque estou esperando uma pessoa.

— Novamente peço desculpas. É melhor eu ir andando. Boa noite.

— Tenha uma boa noite você também.

Só me faltava essa. Se Almira me pega de papo com a vizinha — até que ela não é de se jogar fora — iria pensar o quê? É melhor nem saber. Pelo menos me serviu de termômetro para quando ela chegar. Não posso ficar feito um bobão como fiquei agora. Sei que posso ser mais forte do que isso... E serei. Não vou me deixar levar pela excitação do momento, sem essa de flashback. Não vai rolar. Tenho que ser duro com ela, muito duro mesmo. Que droga! Já estou pensando em sexo de novo.

***

Eu devo estar maluca. Estou brincando com fogo e tenho certeza de que vou me queimar. E daí! Aquele safado já me sacaneou tanto que nada do que eu faça vai fazê-lo pagar pela dor que me causou em todos esses anos. Hoje ele não só vai ver que eu sou muito mais sem ele como também vai ouvir todas as merdas que eu tive de engolir calada, sem o direito de me defender. Já fiquei muito tempo na minha, agora que a poeira baixou, ele vai ter que ouvir tudo o que eu quiser dizer. Eu não sou mais a bobinha que ele conheceu. Hoje ele vai ver que eu sou muito mulher. Se ele pensa que eu ainda sou aquela menininha inocente que ele comeu naquele motelzinho de quinta, está muito enganado. O desgraçado vai tomar um susto quando vir que eu, graças a ele mesmo, me tornei uma mulher emancipada, madura, que não depende de ninguém para nada. Vou humilhá-lo, fazê-lo beijar meus pés, fazê-lo implorar por perdão. Vou tomar tudo o que ele tem, toda a sua segurança estúpida, seu jeito arrogante de ser superior. Mas, e se ele me pega pela cintura com aquelas mãos fortes e me toma um beijo? Se ele me forçar contra a parede e descer as mãos em minhas pernas? Eu não posso deixar que isso aconteça. Não posso! Estou indo para resolvermos logo essa situação estúpida entre nós. Já faz um ano que nos separamos e falta pormos uns pingos nos “is” ainda. É por isso que estou indo ao seu apartamento, só por isso. Nada de relembrar nossas transas, nada de relembrar amores enterrados. É só pelo divórcio e mais nada.

— Boa noite.

— Boa noite, senhora.

— Apartamento 406.

— Um momento, por favor.

Eu odeio o barulho que esses portões eletrônicos fazem quando são acionados. O estrondo mais se parece com um tiro do que com uma trava sendo aberta, isso chega a dar medo. Mas é melhor parecer um tiro do que realmente ser um tiro. O mundo está mesmo tão perigoso que nós temos medo de qualquer coisa. Qualquer descuido e nos levam tudo. Se duvidar até a nossa dignidade eles nos levam sem nenhum tipo de remorso.

***

Ela já está subindo. E agora? Como devo recebê-la? Será que devo ser frio e indiferente ou devo demonstrar afeto? Saudade, nunca. Jamais posso deixar que ela perceba que sinto a sua falta. Seria perder o jogo antes de o juiz apitar o início da partida. Eu tenho que agir normalmente, mas só de lembrar daquele sorriso me dá nos nervos. Que efeito essa mulher tem em mim, que não passa a excitação, mesmo depois de tanto tempo? E a gente nem teve a transa de despedida. Acho que é por isso que ela ainda me deixa tenso. Será mesmo? E se for esse o motivo de sua visita, dar a última foda e sair da minha vida coberta com a minha porra? Claro que não é por isso, seu babaca safado. Mas bem que poderia ser. Se eu não a conhecesse o suficiente para saber que o sexo para ela é secundário, eu poderia afirmar que está com saudade da minha pica naquela boceta. Se ela fosse uma mulher normal, seria por isso, mas ela não é. Deve vir me encher a cabeça com aquele papo besta de mulher discutindo relação. Saco! Ter que aturá-la de novo e sem poder fazer nada. Homem é mesmo um bicho estranho, por mais que odeie a pessoa, basta um abrir de pernas que, por um instante, a gente esquece as diferenças e fica tudo numa igualdade só; depois as coisas voltam ao normal. Tomara que ela esteja gorda e sem graça, pelo menos assim eu fico na minha. Mas isso é tão difícil de acontecer. Almira deve estar no seu auge, afinal sempre se cuidou muito bem. Agora que está sozinha no mundo, deve estar lindíssima. Não quero nem pensar nessa possibilidade mais do que certa. Vou pôr uma música para me acalmar os nervos, algo sutil, mas nada sexy, só mesmo para quebrar o clima ruim que deve pairar no ar. Chico? Isso mesmo. Chico Buarque vai quebrar o silêncio.

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Trecho de Intermitência, a separação dói, o novo romance de Alberto da Cruz.

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