o caso do aviador - assassino e herói de guerra - parte II de III

Não podia acreditar que ali também não tivesse ninguém. Um relógio na parede marcava quinze para as tres. Nunca fui contra o serviço público, mas sim contra os maus funcionários. No nosso país se tem a mania de culpar a todos ao invés de dar nomes aos bois. Corte as raízes ruins e não a planta. Um jardim mal cuidado só fará as ervas daninhas crescerem mais. Corte-as e o jardim será mais belo e as plantas crescerão sadias. A mania de privatizar tirou o entusiasmo dos bons funcionários públicos. Se o governo ou mesmo o responsável pelo departamento corrigisse a displicência e negligência de certos funcionários... Mas parece mais fácil acabar com o jardim do que podar as ervas daninhas.

Coloquei minha pasta sobre a mesa e comecei a percorrer os corredores entre as estantes de livros. Havia ali um cheiro que trazia a minha infância á memória. O cheiro de quando lia os antigos livros e gibis da EBAL. Caminhei até o fundo da biblioteca. Livros esquecidos, jogados displicentemente uns sobre os outros, sem arrumação alguma. Pegando alguns desses e verificando melhor não encontrei nada sobre o assunto em questão.

E assim fui percorrendo as prateleiras. Muitos livros curiosos mas a maioria sobre administração pública do estado. O tempo passou e ninguém chegava para me atender. Eu tomava cuidado para pegar os livros e colocá-los de volta no devido lugar. Não queria Ter a atenção chamada por alguém que chegasse de sopetão.

Uns vinte minutos depois de estar na sala e ter olhado uma dúzia de livros uma moça de uniforme entrou na sala. Trazia na mão uma garrafa térmica de café que colocou em cima da mesa e sem dizer uma palavra saiu da sala tão silenciosamente como havia entrado.

Vendo que ninguém vinha até a sala resolvi descer e ir até a sala em que estivera anteriormente.

Bom, pelo menos pude ver uma moça sentada na mesa dentro da sala lá no fundo.

Na porta havia uma placa dizendo" Entre sem Bater". Foi o que fiz.

Ao explicar para a mulher o que buscava ela me explicou que no arquivo público só constavam documentos oficiais. Insisti dizendo que poderia então haver algum comunicado policial ou mesmo para tentar identificar a data da chamada "Festa dos Pessegueiros" poderia haver algum documento. Pois se identificasse a data dessa tal festa poderia então filtrar a minha pesquisa.

Em seguida ela me deu uma ficha para preencher enquanto ia até alguns dos arquivos encostados na parede e pegava algumas pastas.

Na ficha eu tinha que colocar meus dados, nome completo, endereço, e-mail, e o objetivo de minha pesquisa, como também a qual entidade estava ligado, fundação ou universidade ( lá vinha de novo a questão de pesquisa não poder ser feita por particular, digo não é que não possa ser feita, mas sim que existe a concepção que indivíduos pesquisam somente para trabalhos escolares ou universitários).

Enquanto ela procurava por alguns índices e catálogos de obras e ofícios eu subi até o terceiro andar e peguei minha mochila. Ao chegar de volta ví vários cadernos de índices sobre a mesa. Coloquei a mochila em um armário e me apeguei na busca de algo que me indicasse a data ou mesmo o acontecimento.

O primeiro caderno que peguei, 1937, continha uma relação de índices, mas a maioria era de documentos de Prefeituras e distritos prestando contas ao interventor do estado Nereu Ramos. Como eu havia assistido a poucos dias o filme "Em algum lugar do passado" com o ator Christopher Reeve, o eterno SuperMan do cinema, me senti voltando no tempo ao ler aqueles documentos. Quantidade de farinha no estoque do municipio, quantidade de professores municipais, quantidade de pacientes no hospital, quantidade de pregos usados em certa construção... tudo nos mínimos detalhes, tão simples e tão correto. Anotei em uma folha de caderno os relatórios que gostaria de ler. O rapaz que já havia me atendido, um estagiário, largou a máscara e a pinça e foi em busca dos tais documentos.

Eu esperei um pouco e quando vi que demorava fui atrás.

Uma porta logo a frente estava aberta e entrei por ela.

Mexendo nos arquivos de aço estava o rapaz. Ele procurava pelo número e por um código que havia nos índices que eu havia assinalado.

Dos cinco pontos que eu havia anotado, ele conseguiu achar somente tres documentos. Voltei até a mesa onde estava sentado anteriormente e me debrucei para uma busca mais detalhada.

Nada! Encontrei muitos relatórios de prestação de contas, mas nada que me desse uma indicação da data da tal festa. E assim o tempo foi passando e eu desanimando cada vez mais.

De repente percebo o rapaz junto da mesa.

--- Moço, acabou? Encontrou o que procurava? - disse ele como se estivesse com pressa.

Levantei a cabeça e só então percebi através da vidraça que lá fora a noite já começava a cair.

--- Vamos fechar! - disse ele vendo que eu estava entretido com a pesquisa. - Pode voltar amanhã!

Na sala vidrada a moça já tinha saído. Incrível como não havia percebido o passar das horas.

--- Não! Não achei nada, mas pode deixar! Acho que aqui realmente não vou conseguir nada!

--- Olha, não querendo ser chato, mas se puder dar uma idéia ao senhor! - disse ele. Gostei do jeito do rapaz. Parecia ter vontade de ajudar.

--- Pode falar! Ajuda sempre é bem vinda!- disse começando a recolher o meu material.

--- Porque o senhor não procura pelo arquivo da policia? - disse ele me ajudando a arrumar os índices e catálogos.

Ele tinha razão. Os arquivos policiais, com alguma sorte, poderiam ter algo a respeito.

Agradeci ao rapaz e saí para fora. Estava chovendo. Tive que correr com a mochila nas costas e a chuva na cabeça dois quarteirões até onde tinha estacionado o carro.

Um flanelinha que estava escondido da chuva sob uma marquise, quando me viu chegar até o carro, veio correndo bater na minha janela. Lhe dei um real e rezei por estar chovendo e ele não poder chorar querendo mais.

Uma hora e meia depois cheguei em casa. O trânsito em Florianópolis a cada dia que passa fica pior.

---- Natália, cheguei! - gritei assim que cruzei a porta, jogando os livros e a mochila sobre um sofá no canto da sala.

Nisso a enfermeira desceu as escadas.

--- Boa noite, seu Gildo! - disse ela enxugando as mãos no avental branco.

--- Como ela está? - perguntei.

--- Está bem! - as enfermeiras sempre dizem isso. - Acabei de lhe dar um remédio para dor. Agora o senhor me dá licença mas tenho que ir. - e rapidamente pegou a bolsa de couro na cozinha.

--- Venha amanhã cedo tá?! Vou precisar de você durante uns meses, todos os dias, menos final de semana. Tudo bem?

--- Por mim! - disse ela dando de ombro. - A diária é a mesma! - disse a gorda Natália como se o que importasse realmente era o seu pagamento de cinquenta reais por dia.

--- OK! A gente acerta! Tem alguma coisa para comer?

--- Hii doutor, não fiz nada não! É meu primeiro dia e não sabia que tinha que cozinhar também! - falou já na porta.

--- Se pudesse fazer algo era bom, mas não precisa não, eu me viro. Obrigado, agora pode ir!

--- O soro o senhor sabe trocar né?

Fiz que sim com a cabeça e ela saiu porta afora, para voltar em seguida e pegar o guarda-chuva no canto da porta.

Subi as escadas e bati na porta do quarto. Em seguida abri devagar a porta e entrei em silêncio naquele quarto sepulcral.

Lá estava ela. Dona Maria Das Graças, minha mãe. 83 anos. Cinco anos sofrendo com câncer no intestino. Duas operações feitas. Cigarro havia dito o médico. Usava uma bolsa interna e de uns dois meses atrás começou a inchar a perna esquerda. Um médico consultado disse tratar-se de trombose. Se não houvesse melhora a solução seria a amputação da perna. Mas isso seria só o começo, pois depois de amputada pela primeira vez, isso logo se repetiria, pois havia uma degeneração do membro inferior.