E você? Faria o quê?

Fim de tarde na esquina da Avenida Gonçalves Dias com a Avenida Sete de Setembro, ali no Centro de Porto Velho, dois amigos trocam ideias enquanto matam duas cuias de tacacá entupetadas de camarão.

-E aí, Zé Lelé? Soube do que aconteceu ontem, finalzinho do dia?

-Poxa, cara! Finalzinho de dia em Porto Velho, todo dia acontece uma carrada de coisas... Trânsito louco... Semáforos que não funcionam... Mais carros que espaço nas ruas... Caminhões, tratores, máquinas pesadas e uma porrada de carretas soltando fumaça preta e poluição “pra-dedéu” por toda a cidade... Sem contar as chuvas, buracos, lama e o pior, a ladroeira na Assembleia Legislativa e no Poder Executivo... Escolhe aí, dessas opções, o que é que você acha que eu sei...

-“Takêo”, cara! Que amargura, que desalento!

-Que novidade essa, Praxedes? “Takêo”? Arre égua, o que isso? “Takêo”? Humm! Estudando a língua japonesa, é?

-Não é nada disso, não, meu velho! É uma antiga expressão que um amigo meu, nissei, gostava de usar... O nome dele é Frank, antigo colega de trabalho... “Takêo”, simplesmente significa “tá-que-o-pariu”, uma expressão brasileiríssima... Uma corruptela de “puta-que-o-pariu”.

-Ah... Bom! Meio maluco, esse japa aí, não? Mas diga aí, o que foi que aconteceu no finalzinho do dia de ontem?

-Nada disso... Primeiro me fala a razão do baixo astral... Amigo, tu estás muito borocochô... Qualé, rapaz? Levanta esse astral, meu! Pensa positivo, meu camarada!

-Tem razão... Tem dias em que bate o desalento mesmo, e bate com força na moleira da gente. Por exemplo, hoje tomei duas cacetadas... Primeira: os caras das Centrais Elétricas de Rondônia, a tal da CERON, trocaram o medidor de energia analógico que estava instalado na minha casa por um digital, há mais ou menos uns três meses, resultado, a minha fatura de energia mais que dobrou... Um roubo. Fui lá reclamar e os caras falaram que vão abrir um processo contra mim. Alegam que havia desvio de energia na minha casa... Pensa!

-Espera aí! Desvio de energia? E tu estavas desviando?

-Ficou louco, cara! Claro que não! Olha para a minha cara... Vê se eu seria capaz de um troço desse, cara... Logo eu, que gosto de tudo certinho... Parece até que não me conhece?

-Tem razão! Você é muito otário para pensar numa armada dessa... E daí, o que é que aconteceu mais?

-Pois é! Segunda cacetada... Lembra-se daquela audiência marcada para hoje a respeito daquele processo que eu movi contra os três “bad boys” que me espancaram por causa daquele acidente de trânsito? Daquela vez em que eu me distraí e bati no para-choque traseiro do carro deles?

-Sim! Claro que lembro... Os caras saíram do carro e nem quiseram conversar... Já foram te pegando e baixando o pau... Te quebraram uns dentes e trincaram umas costelas... Você ficou muito mal por uns tempos, hem?

Praxedes tomou mais um gole do tacacá escaldante; com o palito, fisgou uma folha de jambu junto com um grande camarão, levou-os à boca e mastigando-os voluptuosamente sorriu com satisfação aprovando a iguaria regional. Depois levou a mão à boca e arrotou discretamente enquanto comentava:

-Cara, eu não entendo como é que ainda tem gente que não se amarra numa cuia de tacacá transbordando de tucupi, cheia de jambu e entupetada de camarão seco... Só alienígena...

-Peraí! Alienígena? O que uma coisa tem a ver com a outra?

Praxedes sorriu e depois de despejar mais um pouco de pimenta murupi na cuia de tacacá, esclareceu:

-Alienígena, cara! Quem não é da região... De PVH... Quem não é amazônida... Sacou?

-‘Tá bom! ‘Tá legal! Espera um pouco aí... Dona Maria, por favor, sirva outro tacacá, mas desta vez carregue no camarão e na pimenta murupi, viu?

Enquanto a senhora que vendia o tacacá providenciava o pedido, Zé Lelé pegou o paliteiro, tirou um palito e ficou brigando com um pedaço de casca de camarão encravado entre os dentes enquanto retornava ao assunto da audiência:

-Continuando... Acredita que os advogados dos caras conseguiram virar o jogo, meu irmão? Pois não é que os espertos dos advogados - que o Capeta os mantenha em suas mãos, sempre - tiveram a capacidade de transformar o processo criminal contra os caras de TENTATIVA DE ASSASSINATO para AGRESSÃO FÍSICA e INJÚRIA? Acredita num negócio desse? Agora os filhos-da-puta vão pagar umas cestas-básicas e fica o dito pelo não dito... Pode?

-Pode! Fazer o quê, né? É a lei! E então...! Era justamente dos caras que te encheram de porrada, os “bad boys”, que eu quero te contar... Os inhacas morreram... Encheram os cornos deles de bala, maninho! Um levou um tiro na cara, o outro, levou um balaço no peito, e o terceiro, uma pipocada nas costas... Esse um, segundo o policial que atendeu a ocorrência, meu amigo, disse que o cara estava todo cagado... Provavelmente se borrou de medo... O policial disse também que o buraco da bala era grande... Olha só o tamanho do rombo... Minha Nos’Sinhora! Cruz Credo!

-Arre égua! Justiça divina tarda, mas não falha...

Nesse momento Dona Maria, a tacacazeira, entregou a cuia de tacacá com tucupi fumegando para Zé Lelé que agradeceu perguntando:

-Olha lá, hem, Dona Maria, caprichou no camarão? E depois para o amigo Praxedes:

-Quem foi o anjo que livrou a humanidade daquelas pragas?

-Ninguém sabe... As execuções aconteceram lá pela Estrada da Penal... A polícia acha que foi briga de gangue... Disputa de drogas... Ninguém sabe ao certo quem foi a boa alma que fez essa caridade...

Zé Lelé depois de um cuidadoso gole de tucupi fumegante e comer um camarão junto com o jambu ficou pensando um momento e, chamando o amigo para perto comentou:

-Sabe o quê, Praxedes? Lembrei agora de um caso acontecido com esses mesmos bandidos há coisa de uns três a quatro anos atrás... Tu vais lembrar também...

-O quê?

-Lembras que esses mesmos marginais agrediram um italiano... Aquele velho dono da antiga birosca Vesuvius, lá no final do Bairro Nova Porto Velho com o início do Bairro Agenor de Carvalho...

Praxedes assentiu e pediu nova porção de tacacá para Dona Maria.

-Sei... Sei... Aquilo ali não era birosca não, Zé! Era um bar muito do seu ajeitado... “Bar e Lanchonete Vesuvius”... Era como o italiano denominava o bar dele... Italiano, não... CALABRÊS! Ele se dizia calabrês, uma vez que, segundo ele, havia nascido na Calábria e não na Itália... Vai entender os gringos... Para mim é tudo italiano e pronto... Como era mesmo o nome do italiano, calabrês...? Tanto faz... Era, era, era Benedetto Talião... Isso mesmo... Benedetto... O velho ficava muito puto quando a gente o chamava de “Binidito” – Praxedes sorriu divertido ao lembrar-se da irritação do gringo.

-Pois é! Eu me lembro dessa história... Ele carregava no sotaque para dizer que “Binidito” era nome de português e que “Benedetto” era nome de calabrês... Calabrês da gema...

E também sorrindo divertido o Zé Lelé completou:

-O bar fechou, não?

-Fechou! Também... Depois da surra que os três maus elementos deram no coitado do italiano, calabrês, sei lá... Enfim!

-E aí, Praxedes, você se lembra de como tudo começou?

-Claro que eu lembro meu camarada! Eu estava lá na hora briga... Briga, não, surra que o velho levou... Apanhou mais que galinha pra largar o choco.

-E como é que iniciou a confusão?

O gordo Praxedes pigarreou forte reclamando da brabeza da pimenta murupi, ajeitou o enorme traseiro no tamborete, falou um gracejo para uma morena que passava rebolando, recebeu uma carantonha de desprezo de volta, sorriu divertido e continuou a narrativa:

-Tudo começou quando os marginais depois de tomarem todas pediram a conta e reclamaram que o velho gringo, italiano, calabrês, sei lá, estava roubando... Falaram que o gringo estava cobrando mais cervejas do que eles haviam tomado...

-E o gringo roubou? Olha que essa turma de boteco costuma aumentar a conta... Eu estou sempre velhaco com eles...

-Que nada Zé, o gringo sempre foi honesto... E foi isso que o gringo falou pra eles... Disse que as contas do bar estavam sempre certas e que ele, um calabrês honesto, não precisava roubar mixaria de vagabundos bêbados para ficar mais rico ou mais pobre.

-E os caras?

-Pra quê que o gringo foi falar... Meu amigo...!!! Os caras subiram nas tamancas, pegaram o velho, puxaram por cima do balcão e começaram a espancar o coitado...

-Assim... Sem mais nem menos? Na bucha?

-Assim, meu irmão! Na bucha! Sem mais nem menos... A turma do deixa disso conseguiu separar o velho dos agressores por alguns momentos... O tempo suficiente para o velho falar para os “bad boys” que eles podiam bater em um velho... Que podiam bater à vontade... E que o melhor mesmo era que o matassem logo, porque se ele, um velho, um velho mas calabrês, escapasse vivo, ele iria caça-los um-por-um e acabar com a raça de todos eles.

-E os caras?

-Os caras? Ora, os caras bateram com vontade... Depois eu soube que quebraram umas costelas do velho, estouraram o baço do gringo, quebraram uma clavícula e estouraram até os ovos do velho... Teve até traumatismo craniano... O velho gringo ficou meses na UTI, no morre-não-morre, tomando sopinha e mijando através de sonda... Depois ficou também vários meses na fisioterapia... O bar fechou... O velho ficou fodido esses anos todos...

Os dois amigos levantaram e pagaram as contas para a tacacazeira e saíram caminhando em direção ao carro de um deles enquanto continuavam comentando o assunto:

-Sabe, meu caro Praxedes, achei que o velho gringo, o italiano, calabrês, sei lá, tivesse morrido ou voltado para a Calábria ou a Itália dele.

-Pra você ver Zé Lelé, parece que o velho italiano ou calabrês, sei lá eu, não morreu e nem voltou para a Calábria ou Itália...

-Vai saber né? O que eu sei é que a justiça foi feita... TAKÊO!!! E como foi feita...