Maria, Marias

Uma força que nos alerta (1)

De uma Maria conhecida que, no dia em que lançou sua autobiografia, recebeu de uma irmã a visita e um golpe no nariz. Tivéssemos já todos morrido, disse ofendida, aí não incomodaria, mas tinhas tu, a escritora da família – ah, bendita! – que pôr nossos podres no ar. Enquanto eu viver, meu perdão não terás! E foi-se embora ignorando atentos olhares desde dado o soco inicial. E de Maria, a que tinha um blogue e adorava publicar. Era um vício. Postar, termo concreto, real, mas, de momento, um momento de Maria e de tantos outros de sua geração. Perigo é que as marias passam mas suas palavras ficam, vivas e intocadas, pois da rede não se apaga o que uma vez lá se postou. Sempre fica uma cópia, um link, um servidor, um fã. E Maria, motivada pelo afã da fama de escrever, contava de sua vida para quem quisesse ler, num tipo de reality-show, folhetim de agora da TV e dantes dos jornais. Falar de si não era problema, difícil era manter dos escritos bem de fora quem detestava aparecer. Fato é: Maria nada via para fazer e foi gastar os dias buscando sentidos no público. Sentidos sim, pois eram muitos, e os seguidores também, fofoqueiros de plantão. O marido de Maria, se me entendem, um zero contava mais, por isso ela contava dele tudo, sem ponderações. Foi assim que Teresa, que vivia num mundo diferente, num mundo bem real, descobriu um Juvenal que andava triste, não era de se jogar fora e vivia por acolá, largado. Teve dó. Dó e outras notas. Maria revelara dele gostos, defeitos e horários, o que não gostava de comer, tudo lá no seu blogue, para quem quisesse ler. Ora, fazendo de Teresa a oportunidade uma ladra, juntou-se a fome à vontade de comer e logo postaria Maria: seu casamento acabara. A ver que Teresa nunca comentou em blogues, porém os lia, até depois de estar com o Juvenal, que por via das dúvidas, sabe, melhor saber o que pensa o oponente, ainda mais quando este não tem vergonha de contar. Ah, minha vida é um livro!, alardeava Maria a cada atualização. Por que essa fome de viver em aberto, de jogar as intimidades suas e alheias na frente do ventilador, perguntava-se o filho. Este, perseguido na escola, pagava pelos posts da mãe. De que molhava as calças ainda, de que em noites de chuva costumava chorar, de que nem todos os dias trocava a cueca, de que deixava o banheiro por vezes sem ter lavado as mãos. De tudo isso e outros detalhes sujos seus colegas zombavam saber, até mesmo de sua dor. À mãe, havia já pedido: pense mais nos outros antes de postar. Eu penso, meu filho!, retrucava, e ele a odiou por isso ainda mais. Enrustiu-se, não suportava sequer TV, qualquer coisa interativa causava-lhe asco. Um dia, escreveu Maria: meu filho mora agora com o pai, dele não sei de nada, de mim ele não quer saber. E seus seguidores atiçavam: ‘conte, conte mais, nunca deixe de contar’. E contando seguiu Maria, das parcas vitórias, da loucura, dos fracassos, do vazio da própria vida, das tantas e inexplicáveis decepções até que um dia não houve mais posts, comentários, atualizações, nem sequer uma lápide nos cemitérios da rede à qual pudessem visitar, nada. Mas a vida na teia seguiu sem ela, sem alarido ou alteração. Já a conhecida Maria, passado o alvoroço, lição aprendida, seguiu seu nariz, torto mesmo e, acompanhando josés, teresas, marias, escreveu muitos e muitos livros mais. Deu rosto a sem-rostos, nome a anônimos, imaginou ligações, sobretudo deu vida a histórias esquecidas e de ‘lixo’ rotuladas, queimadas e espalhadas num disco de algum servidor.

(1) Trecho da canção Maria, Maria, de Milton Nascimento.

Nota:

Este conto marcou minha primeira participação em um concurso literário - realizado no início deste ano. Como experiência é sempre o melhor prêmio que se pode ganhar, desde já me preparando para os próximos!

Texto originalmente publicado no Bluemaedel (bluemaedel.blogspot.com)