Morte na Família

Madalena faleceu! Como em qualquer caso de morte em família, foi uma grande tristeza e consternação; mas, agora, depois que a ficha já tinha começado a cair, era preciso tomar as devidas providências a respeito do funeral. Os parentes pediram à prima Aparecida que entrasse em contato com a funerária, e com cemitério, para comunicar o falecimento e para pedir que preparassem o jazigo da família para o enterro. Angélica, filha de Madalena, muito abalada com a perda, não conseguia tomar atitude alguma naquele momento, mas, subitamente, lembrou de algo:

– Não podemos enterrar a mamãe!

– Ué, por que não? – indagou Aparecida.

– Lembro que há pouco tempo atrás, numa manhã ensolarada de verão, estávamos na praia e mamãe começou a dizer como seria triste ter que, um dia, deixar a vida e os lugares que ela amava. No mesmo instante, tratei de tirar aqueles pensamentos de sua cabeça porque ter que conviver com a doença já era algo bastante doloroso para ela suportar...

– Sim, mas o que isso tem a ver com o sepultamento? – interrompeu Tomé, o irmão de Angélica, que era biólogo; o mais racional de toda a família.

– É que ela disse que, quando morresse, gostaria que seu corpo fosse cremado e que suas cinzas fossem lançadas ao mar, no mesmo ponto da praia onde costumávamos frequentar. Assim, os seus restos mortais poderiam ficar espalhados pelo lugar que ela mais gostava.

Tomé, surpreso, foi logo dizendo:

– Mamãe nunca me disse isso, que estranho...

– Pois é, acho que ela só disse a mim porque você, como não gosta mesmo de praia, talvez não compreendesse essa vontade. Nossa, só agora percebi como você está branco!

Aparecida também achou estranho não ter tomado conhecimento daquilo porque era muito íntima de Madalena, e Tomé, muito prático e objetivo, foi logo dizendo:

– Ouvi dizer que para alguém ser cremado é necessário a assinatura em uma declaração, registrada em cartório, através da qual a pessoa manifesta a sua vontade. Mamãe fez isso?

– Não sei, acho que não...mas, se ela fez, esse papel deve estar em algum lugar.

Aparecida, pessoa mais religiosa da família, não conseguia esconder uma pontinha de satisfação sobre a possibilidade de não haver documento algum porque, como católica praticante e fervorosa, acreditava que um dia o corpo de cada um seria ressuscitado.

– Gente, esse negócio de cremação não está certo! Deixa isso lá para os povos do oriente que seguem outras religiões...De acordo com a nossa crença, e o restante da família também é católico pelo menos por tradição, não podemos destruir um corpo. Deixa que a natureza encarrega-se de transformá-lo em pó. Por que vamos acelerar um processo que é natural? Além disso, como fica a questão legal se Madalena não deixou uma declaração?

– Não sabemos se ela deixou ou não; temos que procurar! Lembro que naquele dia, na praia, mamãe disse que essa vontade de ser cremada era também porque tinha horror só de pensar que o seu corpo seria devorado por bichos debaixo da terra.

– Ué, mas depois da morte alguém sente alguma coisa? – questionou Tomé – Além do mais, também não é horrível pensar no próprio corpo incinerado?

– Acho pior pensar num corpo queimado até virar cinzas! – respondeu Aparecida – Do pó vieste e ao pó retornarás, lembra? É o curso natural. Não é necessário queimar corpos; digo, etapas. Além do mais, o corpo tem que permanecer num lugar fechado e seguro para quando o dia chegar.

– Que dia?

– O dia da salvação! O dia no qual aqueles que forem salvos terão os seus corpos restaurados e serão ressuscitados, conforme consta na Bíblia.

– Minha prima, com todo respeito à sua crença, isso não faz o menor sentido. Todo organismo morto e decomposto jamais poderá ser restaurado. Sua estrutura biológica foi deteriorada, completamente destruída...Não é só porque o corpo de Jesus não foi encontrado é que a ressurreição, tal como dizem, existe. Para variar, diversos trechos da Bíblia ficaram sujeitos a interpretações equivocadas ou até convenientes. A questão é simbólica, pois aquilo que subiu aos céus e alguns, que tinham vidência, viram, não foi o corpo de Jesus; mas, sim, o seu espírito. Essa história de ressuscitar vem do verbo ressurgir; ressurgir em outro lugar, com outro corpo. Isso não parece mais razoável?

Àquela altura, um impasse havia sido criado na família. De um lado, Aparecida, defendendo suas crenças e representando o restante da família; e do outro, Angélica e Tomé. Contudo, apesar da desavença, juntos resolveram procurar algum papel deixado por Madalena. Vasculharam a mesinha de cabeceira, bem como todos os armários, estantes e cômodas da casa. Referente à cremação, coisa alguma foi encontrada. Como Madalena faleceu por volta das 17:00h, não daria mais tempo para que o seu corpo fosse sepultado naquele mesmo dia e, então, o mesmo seguiu para o cemitério onde ficaria na sala de velório, durante a noite, até a manhã seguinte.

Amanheceu. Os parentes e amigos de Madalena começaram a se preparar para um breve velório que ocorreria durante parte da manhã. Angélica ainda não havia saído de casa quando a empregada chegou e, ao saber da situação, foi até a cozinha para pegar uma pequena ânfora de terracota que ficava sobre uma das prateleiras acima da geladeira. Para a surpresa de Angélica, a declaração, devidamente registrada em cartório, estava dentro daquele recipiente. Madalena só havia comunicado à empregada, para que, desse modo, não criassem desavenças antes mesmo de sua morte. Diante do fato, Aparecida não poderia mais ser contra coisa alguma, pois a existência do documento era a prova definitiva da vontade de sua prima que deveria ser respeitada. Sendo assim, o sepultamento foi suspenso e o corpo encaminhado ao freezer específico para permanecer à espera da cremação que foi realizada no dia seguinte.

De posse da caixinha, entregue no dia marcado, Angélica e Tomé fizeram a vontade da mãe e depositaram as cinzas dentro da ânfora para, depois, combinarem o dia no qual as mesmas seriam lançadas ao mar. Aparecida ainda tentou uma última cartada:

– Creio que devemos sepultar as cinzas. Desse modo, elas ficarão em segurança lá dentro do jazigo, à espera do dia, pois a vontade de Madalena já foi feita.

– Não, Aparecida! – retrucou Angélica – A vontade de minha mãe só foi realizada parcialmente. Não faz sentido enterrar cinzas! As pessoas que desejam a cremação, desejam porque querem que o seu corpo permaneça em um lugar que gostaram muito durante a vida.

Tomé, contemporizando, tentou uma solução que poderia satisfazer a ambos os lados:

– E se a gente dividisse as cinzas, deixando uma parte na sepultura e a outra metade no mar?

– Que isso, Tomé? E aí, como é que o corpo dela vai poder ser restaurado? Como as duas metades vão se juntar? Uma parte lá no mar e a outra dentro da cova...Desconjuro!

– Pelo amor de Deus, Aparecida, não existe coisa alguma aí dentro! O espírito de nossa mamãe, a essa altura, já seguiu o seu caminho...É só procurar que você encontra passagens na Bíblia que também mencionam o retorno do espírito ao mundo físico, só que, obviamente, com outro corpo. Faz favor, não é?

– Tomé, acho que a solução é não enterrar e nem jogar no mar – disse Angélica.

– Como assim?

– Vamos deixar as cinzas aqui em casa!

– Onde?

– Na estante da sala. Muita gente guarda as cinzas do parente na própria casa. Pode até parecer meio mórbido, mas acho que é o melhor jeito.

– Mas e como fica a vontade de mamãe?

– Deixa comigo que eu também já pensei nisso...

E a ânfora ficou lá, adornando uma estante da sala que ficava bem em frente à entrada do apartamento; de modo que, para todos que entravam, era impossível não lembrar de Madalena. De vez em quando, Angélica levava o jarro para tomar um solzinho na praia.

Bruno Cesar Boisson
Enviado por Bruno Cesar Boisson em 30/03/2013
Reeditado em 16/06/2013
Código do texto: T4215660
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