Claridade

Tia não agüentava mais a mínima claridade possível. Virava de um lado pro outro, sozinha. Quase perplexa no seu sono de velha, tia era como uma flor fechando-se na madrugada. A gente dizia “tia, tia... não se feche”, mas ela calada transmitia uma força gigantesca, como asas alçando um vôo rígido. Quando soprava o vento mais forte ela queria soltar a mão de quem a segurava. Queria viver aquele momento em que ela era filha e mãe do vento, quase como uma rainha do ar. A cada espaço mais ligeiro, com uma fatalidade que trazia uma ternura firme, inquietava-se, remexia-se na cama, os lençóis sobre o rosto, a perturbação com a finura da meia-luz. “Apagou a luz da cozinha?” perguntava de súbito. A gente pensava que era em sono profundo que ela dizia essas coisas, mas já ouvindo a voz alta e grave no meio da sala, sabíamos que ela mesma não podia mais com a luz. Os olhos semicerrados e finos, a boca grande, a figura dos dedos que diziam “olhe, olhe, a luz está acesa... veja como está acesa!” Era o momento da criação. Não da luz, mas daquela noite que fora uma tarde e uma manhã e enfim se chamava dia. Sem medo a gente olhava e percebia que era uma velha criando. Já ela estando toda interiormente iluminada de luz branda e macia, como um lago morno onde passeava deitada sobre a própria quietude, tia não necessitava de luz externa que, no final das contas, era preciso apagar para não pagar muito no fim do mês. Como não sabia que luz também é uma ação, ela brilhava toda íntima na sua escuridão de certeza. Mas ela sabia de um mistério que era como rezar a salve-rainha em latim: essa mania que os velhos têm de procurar Deus no escuro. Ele que não se apaga antes da vela. “Ele, Ele...”, sim mas há de se concordar que quem vela por nós também vive nas trevas.

A tosse seca cortava a imensidão da casa. Não havia um barulho sequer que amortecesse o eco daquele uivo tão familiar: uma velha tossindo no escuro. A gente se assustava de súbito, olhando com calma, a mão ligeira corria pro estômago – aquele grito seco parecia ter vindo de dentro da gente. Como se não soubéssemos também que um dia nossa capacidade de tossir e assustar se revelaria. Pois nossa tosse atual era repleta de espuma misturada a lágrima e muco. Era um som inaudível, uma perplexidade muda quase de nascença. A gente não tinha jeito pra conviver com aquele susto inútil que rompia tímpanos negligentes. “Tia se engasgou”, pensávamos. A gente olhava debaixo da cama e via nossos chinelos repousando em silêncio. O que não dava pra ver era o corpo daquela mulher arfando sobre a dureza da cama. Se ela usava os olhos para ver durante o dia, de noite se guiava pela esperteza de seu tato, enquanto a gente se movia vacilantes, pois não sabíamos como enxergar na hora certa.

Depois de tudo, no meio da madrugada, passos lerdos revolviam a poeira do chão. Um bocejo prolongado, dividido em etapas de suspiros, amainava a lembrança do grito rouco que se espalhara no ar do quarto. Tia então de novo deitava, se ajeitava com mais cuidado sobre a cama, o corpo sério, grande, separado da gente pelo milagre de existir em segredo no escuro. A gente que tinha tanto medo de abrir os olhos e se perceber ali, respirando entre sombras. O tempo passava, um fungado triste vinha morder de leve nossos pés de anjo, tia sorria para a sua escuridão neutra e perplexa. Dava pra perceber que o sono chegava – ela que dormia sem perceber que dava gritos. Quando a aurora enfim dissolvia o mais fino fio da noite, enquanto a flor murcha resfolegava em seu transe de fantasma, então adormecíamos todos com aquela paz tão íntima da morte, aconchegados e felizes por morrer no início do dia.

Silvano Gregorio
Enviado por Silvano Gregorio em 17/04/2014
Reeditado em 24/03/2022
Código do texto: T4771882
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