A visita do Santíssimo

E como fagulha no paiol, crepitou logo a notícia da iminente vinda do Santíssimo a visitar o povoado de São Gonçalo do Brumado. E nem era domingo ou dia santo de guarda, era um dia de semana qualquer e, pra variar, a fábrica mantinha a prioridade para reclamar a presença de mamãe. Assim como tantas outras, e tantos os seus parceiros. A fábrica já parava aos domingos e feriados e não fazia exceções - com todo respeito ao visitante. Que já estava a caminho, nas sacras mãos de algum padre da vizinha Velha Serrana.

Mas nada disso tirava solenidade e gravidade ao fato: Visita do Santíssimo, quanta bênção e quanto pedido se podia fazer. E tão despachada quanto o visitante, mamãe não se fez de rogada: botou-nos todos banhados, vestidos e penteados e nos confiou à zelosa

tia Vicentina, que frequentemente nos pageava enquanto mamãe e papai se alternavam em turnos fabris.

E já quase de saída pra "fapa", mamãe teve tempo e graça ainda para fazer aquele ramalhete, mais de jasmim, tenho em mim, e colocá-lo na janela da frente da casa apoiado na melhor e mais engomada guarnição que tínhamos. Era nossa homenagem ao Santíssimo. Que aliás íamos ver de frente a frente, da casa de vovó na companhia da tiarada.

A casa de vovó tinha a vantagem de ficar na numa das ruas que formavam o quadrado central do povoado e por ali não tinha escape, visitante ilustre pisava de rigor - e quase sem opção - aquela leve subidinha pra percorrer o quadrado ou ir mais além, se assim fosse desejado, amém.

Só que a "nossa rua", também chamada por alguns mais antigos a rua do Quenta-Sol, apenas se relacionava com o tal quadrado ao sair dele - e dar em lugar nenhum, ou seja, na porteira que levava ao pasto. E ao horizonte da mataria que se perdia, até que com o céu se fundisse.

E assim, o Santíssimo, apressado como ele só pra salvar almas outras nas mãos alvas e onanísticas do Vigário, não podia se dar ao luxo de visitar todas as ruas. Já o sabíamos, tanto é que mamãe nos despachara para a casa de Vovó, e fizera questão de deixar o

guardanapo engomadinho e o ramalhete de jasmim bem espevitados na soleira da janela para que ao dobrar a esquina o Santíssimo que tudo vê, visse o arranjo e por meio de um seu Anjo o borrifasse dumas gotas de suas bênçãos também ali pra nossa casinha.

Tia Vicentina foi que do fundo de suas lentes não ficou muito convencida da possibilidade, dizendo logo que da distância da esquina daquela rua empoeirada não dava pra ver nada, enquanto nos levava pra sua rua mais santificada.

E me veio logouma pena de todo aquele esforço e entusiasmo de mamãe por nada. Por respeito ao visitante ou por não alcançar um petardo fulminante, ainda ruminante, poupei a vida de Tia Vicentina. Por um instante. Lancinante.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 19/09/2014
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