2Q==
 
 
Se você pedir Ele atende
 
 
O momento era de desespero, e ninguém para lhe socorrer, estava só no mundo desde seus cinco anos.  Mas naquele instante era de especial desalento, pois a fome não lhe atacava, era tanta que agredia.

Divagou o que poderia fazer para por fim à triste situação que vivia. 

Pensou em procurar uma igreja, mas lhe veio no pensamento: o que vou fazer lá, não creio em nada, e sequer sei rezar, mas continuou.

Lá chegando ensaiou a reza “Ave Maria assim na terra como no Céu, o pai nosso santificado de cada dia, o Senhor é conosco, bendita sois vós entre os santos, que venha a nós o vosso reino bendito do fruto de Jesus, e perdoa nossas ofensas ...”, misturando tudo, não sabendo concluir, exclamando: ah, sei lá como reza isto.

Tentou fazer o “Sinal da Cruz” e começou errando, por iniciar com a mão esquerda, e mesmo assim continuou e teve instantes de paz.  A angústia desapareceu, a fome não.

Prosseguiu em seu intento, orando do modo que sabia, mesmo com os atropelos nas palavras e pensou, se Deus existe mesmo e sabe tudo, então eu não preciso falar certo ou nem mesmo falar, pois se Ele quiser me atende assim mesmo.

Neste momento contrito foi surpreendido pelo sacristão que deu um toque em seu ombro e disse: Desculpe, porém, peço que você reze rápido pois estou saindo para almoçar e preciso fechar a igreja.

O menino pensou, é, estou certo esse Deus a que todos se referem não existe mesmo, pois até da casa Dele sou enxotado. E ficou com o olhar fixo no Santo e no homem que lhe perturbava a oração.  Não gostou.

O sacristão também estava com olhar fixo no menino, e em seguida falou: Você não quer ir almoçar comigo ? meu filho se foi há alguns dias e sinto muita sua falta ?

- Tio eu gostaria de ir, pois tenho muita fome, e mesmo em minha condição de miserável que sou, tenho vergonha de ir à sua casa sujo e fedido, pois a dias não tomo banho e minha roupa está muito mulambenta

- Não tem problema meu filho era de seu tamanho e as roupas dele servem para você, que toma um banho e troca essa sua por uma dele, almoça e ai você se vai.

- Seu filho não vai ficar bravo por você ter emprestado as roupas dele para mim ?

O menino olhou para o sacristão e viu, pelo gesto que fez, que sentiu uma pontada no coração.

E emendou: Tio eu estava quase aceitando o convite, mas quando você falou para eu almoçar e ir embora fez com que eu desistisse.

- Mas por quê ?

- Porque não quero ser tratado como ser humano por alguns minutos e depois voltar a ser o bicho que eu sou. Tenho medo desta experiência.

- Ah, então está bom, se você quiser ficar mais um pouco pode e quando quiser ir você se vai.

- E se eu não quiser mais ir ?

- Não tem problema, você não se vai, fica morando comigo.

- Eu até quero isso, mas quando seu filho voltar ele não vai ficar bravo com você e comigo ?  não vai querer me mandar embora, como todos fazem ?

O sacristão abaixou a cabeça e começou a chorar.

- Desculpe tio, não quis ofender você, eu só quero saber se eu ficar e ele voltar não vai dar problemas ?  se ele não brigar você fica com nós dois ?

-  Não, não garoto, você não entendeu. Como é seu nome ?

- Não tenho nome, na rua todo mundo me chama de Desencontro, por não falar nada com ninguém.  Vivo quieto em meu canto.  Sofro sozinho, porque os outros são iguais a mim.

- Não é possível você não ter nome, e quanto menos ser chamado de Desencontro.

- Mas é isso que acontece, não tenho nome, aliás, não tenho nada na vida, então pra que preciso ter nome ?

- Vou chamar você de Lucas, que é o nome de meu filho.  Viu Lucas.

- Não, não faça isto, quero ser chamado de Desencontro e acabou, nada de Lucas.

- Está bem, você não entendeu o que disse a respeito de meu filho, ao afirmar “ele se foi”, pois quero dizer que ele se foi para sempre.  Ele morreu atropelado quando voltava da escola, no ponto de ônibus, por um jovem que estava dirigindo embriagado e em alta velocidade.

- Poxa tio que chato isso.  E o rapaz que fez isso pro Lucas, o que aconteceu com ele ?

- Nada, está ai andando do mesmo jeito e vai atropelar outros.  O que me resta fazer é o que faço sempre, chorar de saudades. Nada mais, nossa lei é branda demais.

- É Desencontro, isto sim que é desencontro, é triste, muito triste, pois ele era feliz, tinha sonhos e esperanças, e dizia que ia ser médico para também ajudar aos necessitados.

- Que legal tio, ele era bonzinho assim.

- Um garoto de ouro, que dava muito carinho para mim.

- Poxa tio que chato e triste !

- É, mas vamos lá para casa, e você fica um pouco comigo, pois gostei de você.

- O tio eu não vou atrapalhar?

- Não, vai me ajudar, isto sim.

- A propósito, que pedido você veio fazer a Deus nessa igreja?

- Na sinceridade não vim pedir nada, somente sentar um pouco aqui, e se é dito que Deus sabe tudo, então Ele sabe o que preciso, e se quiser me ajuda mesmo sem eu pedir.

- Vamos lá para casa.

- Deixe-me falar mais uma coisinha só aqui para Deus:  Será que só por aquele pedidinho que fiz só em pensamento Você já está me ajudando ?

Nenhuma resposta.

- Desencontro vamos, eu tenho que voltar para arrumar a igreja para a missa das três.

- Vamos sim.  E eu até agora não perguntei qual é seu nome tio,  qual é ?

- Alexandre Almeida.

- A -  le - xan – dre, interessante, parece que esse era o nome de meu pai.

Saíram para a casa do sacristão.

Desencontro foi para o banho e Alexandre preparou a roupa e o almoço.

- Você tomou banho rápido !

Ele nada respondeu.

- Vamos almoçar.

Sentaram-se à mesa e comeram em silêncio, apenas trocaram olhares, o de Desencontro de desconfiado, o de Alexandre de ternura e agradecimento, e a relembrança da convivência com Lucas.

- Tio pensei bem, vou pedir para quando acabar de almoçar, que possa ficar mais um pouquinho com o senhor e depois me vou, para que você fique sossegado, pois não tem nada a ver com meus problemas.

- Eu sei que não tenho, mas não quero que você se vá já.  Fique sim mais um pouco.

Desencontro somente olhou para Alexandre, também calado.

Seguiram-se alguns minutos de silêncio.  Saíram da mesa e se sentaram no sofá da sala.  Em instantes o menino dormiu.

Alexandre ficou olhando e relembrando seu filho Lucas, que também fazia isto, almoçava e dormia em seguida.

Passaram trinta minutos e Alexandre viu que precisava voltar para a igreja.

Chamou com dobrado zelo para que Desencontro não se assustasse, e foi o que se deu, pois quando acordou não se sintonizou bem onde estava, mas logo se recompôs.

- Tio vamos embora ?

- Para onde disse Alexandre assustado.

- O senhor vai para a igreja e eu para minha casa, a rua.

- Não Desencontro, não fale assim, se você quiser pode ficar, vou lá arrumar a igreja e já volto para conversar um pouco mais com você, que me fez muito bem.

- Tio você também me fez muito bem, não por ter me deixado tomar banho, me dado roupa limpa e almoço, mas por ter me escutado, por sua atenção, pois estou me sentindo gente, sabe tio?

- Sei, sei sim Desencontro, eu também estou me sentindo gente.  Estou confortado por você ter me ajudado a me reencontrar, eis que desde a morte de meu filho Lucas estava me sentindo um extraterrestre, um robô.

- Tio, gostei do que você falou, posso ficar mais um pouco?  Você   mora sozinho?

- Sim, minha mulher faleceu seis meses antes de meu filho.

- Tio posso ir até a igreja para ajudar você ?

- Claro.  

- Então vamos, já está chegando perto das três horas!

- Vamos.

Alexandre e Desencontro saíram caminhando e conversando, e chegando na igreja trabalharam rápido e voltaram para casa.

Sentaram na varanda e falaram sobre suas vidas. 

Desencontro falou pouco, pois quase nada tinha para falar, eis que sua vida se deu nos limites do “passar fome”, “não tomar banho”, “não trocar de roupas”, “dormir ao relento”, e muitas vezes com medo e frio.

- Desencontro, e amor alguém lhe deu neste tempo?

- Nem sei o que é isto, pois jamais alguém se interessou por mim.  Ah não, estou mentindo, uma pessoa, uma menina com mais ou menos 15 ou 17 anos, embora se vestisse de forma bem simples, muito simples, a cada dez dias mais ou menos, passava no lugar onde eu ficava e me dava um lanche e um copo de suco.   Se isto é amor, foi o único que recebi em toda minha vida.

- É Desencontro, é isto mesmo, isto é o Amor, pois ele está nos pequenos gestos de pessoas que mesmo tendo pouco reparte com quem tem menos ainda.

Aproximou-se a noite e Alexandre pergunta a Desencontro se ele vai ficar?  Se iria dormir ali?

Desencontro ficou meio ressabiado em responder e perguntou a Alexandre se poderia passar aquela noite ali ?  

- Claro, fique, pois vai ser bom para você e para mim.

Conversaram mais um pouco e foram se deitar, os dois em estado de graça, porque reciprocamente supriram suas necessidades afetivas e materiais.

Cedo se sentaram à mesa para o café e Desencontro não tirava o olho de Alexandre e nem Alexandre dele. Entreolhavam-se em silêncio.

Desencontro o quebrou com um emocionado agradecimento a Alexandre, que somente o ouvia, limitando-se a singelos gestos, e a enxugar algumas lágrimas.

Depois Desencontro estendeu a mão em despedida a Alexandre, que não estendeu a sua, tentando conter as lágrimas.

Desencontro se levantou e deu passos em direção à saída, e Alexandre pediu para que não fosse, quando se dirigiu até ele Desencontro, e num abraço reafirmou seu pedido para que ficasse ali para sempre, pois precisava muito dele e sua companhia lhe fazia muito bem.

E completou que havia entrado naquele momento na igreja para também pedir a Deus que lhe mandasse alguém para ser sua companhia, lhe desse carinho e amor.

Desencontro com olhar fixo em Alexandre respondeu:

- Tio, mesmo não acreditando em Deus, este também foi o pedido que fiz.

Voltou-se para Alexandre e num abraço amigo e carinhoso disse:

- Alexandre se eu e você pedimos a Deus, em quem agora creio, que nos desse uma companhia, e Ele nos atendeu, então eu digo:  Vou ficar com você.

- Alexandre posso lhe falar uma coisa ?

- Claro Desencontro, fale !

- Alexandre agora, mais do que nunca compreendo aquilo que a menina fazia ao me trazer, mesmo que de dez em dez dias, aquele suco e lanche.  Sinto agora, pelo modo com que as coisas aconteceram entre nós, ajudando um ao outro, que isto também é amor.

Assim posso, sem medo, o mesmo que me acompanhou a vida toda, lhe dizer, com o coração aberto que amo você e sinto que você também me ama.

E mais, passei agora a acredita que Deus existe e nos faz felizes.

Alexandre e Desencontro se abraçaram ternamente, e depois Alexandre falou:

- Desencontro, peço que você me deixe fazer a legalização de seus documentos e de registrá-lo como Lucas Encontro de Almeida, pois tenho certeza que Deus ao ouvir nosso pedido naquele instante lá na igreja, fez com que acabasse os desencontros de nossas vidas, e começasse a fase dos encontros.  Posso ? e ai você passar a ser meu filho ?

- Pode sim “pai” ! pois isto representa sua vontade, a minha e a de Deus, que ouviu nosso clamor naquele momento.

Fizeram como haviam conversado, legalizando a situação de Desencontro, que agora era Lucas Encontro de Almeida.

Conviveram por longos e felizes anos, Lucas amparando Alexandre em sua idade, até um dia, como ele disse, deixou tudo aqui nesta vida bem preparado para Lucas Encontro, para ir ao encontro de Lucas, seu filho.

Pai Alexandre, vá para junto de Deus e de seu filho e meu irmão Lucas.

Eu te amo Pai !
Brasilino Neto
Enviado por Brasilino Neto em 22/10/2014
Reeditado em 01/07/2017
Código do texto: T5007527
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.