TIA AGHATA

Uma das coisas que eu mais detestava, quando criança, era a visita que fazíamos anualmente, para tomar abênção, à tia Aghata.

Que mulher chata!

Que criatura antipática, metida à merda!

A casa dela era um sacrário, onde os mortais, sujos por dentro e por fora, não podiam por os pés, nem sentar, nem ficar de pé, nem olhar os enfeites sobre os móveis ou as fotografias dos antepassados, colocadas em molduras que mais pareciam caixões de defunto sobre os muitos consoles alinhados juntos às paredes pintadas com cores escuras, assim verde musgo, grená, azul marinho.

Aquelas portas, que mais pareciam portas de igrejas, grandes, largas, pesadonas que o seu Oscar, o velho empregado, velho e tão chato quanto a tia Aghata, fazia questão de manter fechadas para que nós, os iconoclastas não tivessem acesso aos outros cômodos da casa além da sala de visitas cujo chão era totalmente coberto por carpete cinza chumbo.

Em vez de sentarmos nas cadeiras de palhinha, sentávamos no banco comprido de madeira grosseira que seu Oscar colocava em frente à cadeira de espaldar alto, onde a tia Aghata, sentada, interpretava o seu papel favorito de imperatriz em cujo reino o sol não se punha, tal como a rainha da Inglaterra, mas faltava-lhe a nobreza, a majestade que sobrava à outra.

Essa tortura se repetia todo primeiro domingo de cada ano. Chegávamos à casa dela às catorze, nunca antes nem depois, e saíamos às quinze horas, sem nem um copo d'água.

Invariavelmente os nossos boletins escolares eram levados para que a megera examinasse, um por um, e fizesse a explanação de como eram as escolas “no seu tempo” quando aluno só tinha duas alternativas, ou aprendia como gente ou aprendia como beira de sino, levando pancada até cantar tudo certinho.

Era um alívio quando seu Oscar, faltando poucos segundos para o relojão bater às três da tarde, abria a porta da sala para sairmos.

Em fila, minha mãe, meu pai, meus irmãos e eu, (meu pai era o sobrinho mais velho da tia Aghata), depois meus tios, minhas tias e primos, sempre por ordem de nascimento dentro de cada núcleo familiar, iam beijar a mão cadavérica da tia Aghata e, sem aceno, sem gestos amistosos ou quaisquer outras manifestações de civilidade ou de simpatia para com os adultos e crianças, éramos despachados com um breve, - até o ano que vem.

Numa tarde fria e chuvosa, nem me lembro de quando, alguém veio avisar da morte da tia Aghata.

Fomos todos para o velório que aconteceu na sala de visitas da casa, todos os móveis haviam desaparecido, apenas os bancos compridos, com os encostos colados nas paredes para os presentes sentarem. Éramos os mesmos de sempre.

Todos vestidos de preto.

Apenas os parentes porque tia Aghata não tinha conhecidos nem muito menos amigos.

Nessa época os defuntos eram levados pelos parentes e conhecidos.

O serviço funerário era feito por duas ou três empresas, que possuíam coches puxados por cavalos para o transporte do caixão, mas era coisa que somente gente muito endinheirada podia contratar aquele veículo de madeira pintada de preto com vidros decorados com flores esmerilhadas nas quatro faces e anjinhos esculpidos nas laterais, sustentando tochas, os cavalos de pelagem negra, enfeitados com penachos e o cocheiro vestido a rigor, com cartola e luvas, sentado no banco almofadado de couro, porque custava os olhos da cara.

Como nem todo mundo podia pagar um luxo desses e dependendo das posses se podiam contratar alguns homens sem emprego, que ficavam nas portas dessas funerárias, caso o número de familiares não fosse bastante para tal.

Era serviço que devia ser empreitado por fora dos acertos com as funerárias e foi isso que meu pai sugeriu aos primos vez que o cemitério ficava distante e eles eram bem poucos para aguentar mesmo considerando que a tia Aghata era muito magra, mas como qualquer defunto, devia estar pesada, não tanto pelo corpo, mas pela chatice.

Em meio às conversas em voz baixa, os parentes falavam da maneira de ser da tia e o único choro que se viu foi o das velas.

A maior parte das crianças já dormia sobre os bancos quando apareceu uma senhora com vestido vermelho, brilhante e muito justo no corpo.

A pintura do rosto denunciava a profissão dela, mas não era bastante para esconder o quanto era parecida com a tia Aghata.

Aproximou-se do caixão e com voz serena disse aos presentes.

- Eu sou a tia Augusta. A ovelha negra da família... A desprezada... A deserdada que ao ser expulsa da casa paterna, teve que se refugiar numa pensão para prostitutas, mas que não deixou de ser irmã... A irmã gêmea de Aghata.