A via crúcis da alma

Lá estava Ele, o Menino, ainda miniatura do adulto. Estava lá sentado no colo da Virgem aparentando corpo e cara de adulto. Já sabia se vestir só, era até bem articulado com as palavras, com as linguagens, convivia com adultos, trocava com eles alguns momentos de lazer entre historinhas e jogos. De repente, o Menino pergunta à Virgem mãe:

- Minha mãe, preciso mesmo ir à escola conhecer melhor a mim e à natureza?

A mãe, surpresa e feliz com a ideia, acena-lhe positivamente com um leve sorriso no rosto. Era o início da responsabilidade dos pais com os filhos que colocavam no mundo. A Era Medieval acabara de ceder espaço para o renascimento das ideias, dentre elas, um novo conceito de infância e de família estava por vir. Comprova-se isso facilmente analisando fotos de outrora. Está Ele lá, de capuz e túnica, sentado no colo da Virgem, depois de trololó com o avô, mas sempre bem evidenciados seu corpo de criança e sua fisionomia infantil, tanto em uma quanto em outra foto. Inicia-se aí o distanciamento entre adulto e criança.

- Minha mãe, por que não devo dividir cama com meu pai?- questiona Ele novamente.

A mãe, surpresa com a pergunta, responde-Lhe que são cuidados que garantirão a guarda de sua inocência de criança. O Menino não entende nada, mas obedece aos ensinamentos da mãe porque nela confia plenamente ou porque é possuidor de docilidade. Confiança e docilidade, coisas daquele contexto!

Desse modo, de questionamento em questionamento, o Menino, curioso que era, vai saindo aos poucos do colo da Virgem e ocupando espaços, antes proibidos ou ignorados pelos adultos. O Menino vivencia, então, espaços e situações prescritas ou previstas por Rousseau, Fröebel, Montessori, Freinet. Enfim, escola, família e sociedade atingem a Modernidade. O Menino sempre acompanhado pela Virgem e, cada vez mais, sob a responsabilidade dos pais.

Agora, já não mais visto pela sociedade como miniatura de adulto. A Sua via crucis vai se completando aos poucos. Já é o centro da família. Quem diria?! De fruto do pecado original e portador de impurezas cristãs, a centro da família! Foi longe esse Menino!

A preocupação da Virgem e também da sociedade não era mais com a formação do Menino. A convivência familiar e com as demais pessoas à Sua volta, além da escola, já o haviam formado sob os ensinamentos das mais diversas correntes teóricas. Mas a preocupação era com o que Ele trazia na alma. Ah! Essa alma! Recorrem-se, então, a Freud. Tanto a Mãe quanto a escola. Aliás, toda a sociedade quer saber o que se passa na alma desse Menino. Se não é um adulto em miniatura, é o que então? Como decifrá-Lo? Até onde pode chegar? O que esperar dele?

A Virgem e a escola se apegam intensamente às descobertas de Freud e demais estudiosos. E, em pleno século XXI, tentam aplacar algumas das carências e das histerias do Menino. Em uma dessas crises de histeria, a cena foi mais ou menos assim:

- Minha Mãe, por que meu celular não é da Apple? O olhar dirigido à mãe era esverdeado, continha aquela substância ingerida pelo incrível Hulk. Algo escorria pelo canto de sua boca, era uma baba verde. Sim, babava histeria.

E a Mãe, atônita, tropeçando nas palavras, sem conseguir elaborar bem o pensamento, com cara de espanto e medo, responde-Lhe que são dificuldades advindas do capitalismo que se instaurou no mundo moderno. Entretanto, que Ele aguardasse as finanças melhorarem para que tivesse acesso a um Iphone.

A crise de histeria se intensifica a ponto de a Virgem ver em seu filho a figura de um monstro ameaçador.

Sentiu-se refém da situação, e assustada com a reação do Menino, que é indescritível, mesmo porque se respeita aqui a figura sagrada desse Menino. Ou o Menino sagrado dessa figura! Não sei ao certo! Porém, sagrado! E há que ser sempre sagrado! A figura da Mãe também sacra!

Em uma outra cena, já não mais sob crise de histeria, mas de violência, já em tempos pós-modernos, a figura do Menino aparece perambulando pelas ruas, tentando sobreviver à fome, à carência afetiva e à miséria. A mãe, agora pecadora, aos olhos da sociedade, passou a noite na Crackolândia e nos programas que se seguem após uma visita a espaços desse tipo. Esqueceu-se de sua responsabilidade para com o Menino. E, nessa cena, quem tira o Menino do colo e ganha espaços cada vez mais deprimentes para a alma humana, é a mãe. De sagrada, passou à profana! Perdeu sua identidade. Aniquilou-se como pessoa humana, tamanho o fardo que carrega sozinha.

É madrugada e o barulho de alguns tiros de revólver coincidem com uns movimentos do corpo da mãe que dormia jogada às calçadas de uma rua qualquer.

- Acorda, senhora! A rua precisa ser evacuada. As barracas do comércio serão montadas para mais um dia de trabalho intenso, tudo dentro da normalidade! - esbraveja o policial.

Ela, sem forças, digna de pena, quase um animal (não de estimação!) encara o policial e deixa escapar de seus lábios, antes da ascensão de sua alma:

-Essa é a via crucis da alma do Menino. De fruto do pecado original, à miniatura do adulto. De miniatura de adulto, a sujeito com especificidades próprias. De habitante do paraíso infantil, a centro da família. De centro da família, a menor em situação vulnerável. A sociedade precisa se dar conta de que é o sentimento de igualdade e fraternidade que poderá resolver essa equação. Fica a dica! #aalmadomeninopedesocorro.

A vida é dura
Enviado por A vida é dura em 25/08/2016
Reeditado em 26/09/2016
Código do texto: T5739910
Classificação de conteúdo: seguro