Velhos Erros

-- Dane-se o que o que você pensa! – ele tinha se descontrolado, já não tinha certeza do que estava dizendo – se é isso que você quer, eu vou embora!

Ela silenciou. Com a mão no rosto ela chorava. Ele sabia que ela tinha se decidido; pra ela, ele tinha ido longe demais.

Ainda com raiva, ele saiu da sala; foi até o quarto, tudo parecia estar fora de lugar. “Vou juntar o que der, outra hora eu venho e pego o que me fizer falta.”

Procurou pela aquela grande bolsa de viagem, mas ela não tava sobre o guarda roupa como devia. Enquanto ele procurava embaixo da cama, ela apareceu na porta.

-- O que você pensa que tá procurando aí? – na sua voz não tinha nada de compaixão. – Se você ta mesmo indo embora, esse quarto não é mais seu.

-- Mas acho que tenho o direito de tirar as minhas coisas desse seu chiqueiro! – ele queria acabar com aquilo o mais rápido possível.

Ele levantou, ela lhe olhava com um ar de desprezo que só ela tinha; não só ela: aquela velha ridícula que ela chamava de mãe costumava olhar pra ele daquele mesmo jeito. No canto, jogada, estava sua jaqueta da McLaren. Ele sabia o quanto ela não gostava daquela jaqueta, o quanto ela achava infantil a sua paixão por automóveis. Ele se abaixou e a pegou; esperou algum comentário, “tire todas essas coisas imundas daqui”.

-- Ótimo. Estou indo. Eu volto busc...

-- Não! – ela o tinha interrompido arrogantemente – você pode ir, mas, enquanto eu estiver aqui, você não volta.

Ele puxou ar. Sua cabeça ia explodir. Mas não falou nada; sabia que ele não ia conseguir falar pouco, e ficar mais tempo ali era o que ele menos queria.

Respirando fundo, ele saiu do quarto. Em cima da mesinha do telefone estavam as chaves do carro; ele pegou as chaves e esperou um comentário dela, ele queria jogar na cara dela que o carro era dele e ele ia levá-lo e que ela não podia fazer nada quanto a isso. Mas ela não disse nada.

-- Tchau, Vivian – disse ele contendo toda a raiva. Disso ela não podia reclamar, educado ele sempre fora.

Ela não respondeu. Na porta, ele parou e olhou pra ela. Ela lhe olhou fundo nos olhos e virou a cara. Um milhão de coisas passou pela cabeça dele, o que ela quis dizer com aquilo?

A última coisa que ele sentia agora era pena dela, ou arrependimento. Por que ela tinha que ser tão orgulhosa?

Ele saiu.

Ela bateu a porta atrás dele. Ela, ele sabia, ia chorar por horas e depois ia ligar pra uma amiga, que a consolaria, e tudo ia ficar bem. Ela ia descobrir que nunca gostou dele, que tudo tinha sido um erro.

Enquanto esperava o elevador, ele pensava no que ia acontecer agora. Ele não queria saber, o que ele queria era estar o mais longe possível dela. Ele finalmente tinha caído na real que ele não gostava mais dela. Ele não se arrependia do tempo que tinha passado junto dela, mas tinha certeza que não valia mais a pena; foi bom enquanto durou, mas agora acabou. Acabou.

*

-- Dane-se o que você pensa! – e mais uma vez ele estava sendo estúpido – se é isso que você quer, eu vou embora! – e mais uma vez ele estava sendo insensato.

Ela sabia que ele não ia. Sabia que ele estava só se fazendo de vítima. Era sempre assim, ele nunca entendia o que ela falava; sempre dizia que ela era mimada demais, arrogante demais. Ele achava que ela não confiava nele, que ela só confiava nas amiguinhas dela.

Mas dessa vez parecia diferente, ele parecia estar falando sério. Ele tinha levantado; ela o via vindo em direção ao quarto do casal, uma expressão de ódio estampada em sua cara.

Ela sentiu medo. Ela não sabia do que ele era capaz; eles já tinham brigado antes, mas nunca tão sério. Ela estava chorando, chorando como uma criança. Numa tentativa de tentar esconder as lágrimas, ela pôs a mão no rosto; estava sendo ainda mais infantil.

Ele passou por ela. Entrou no quarto. O que ela ia fazer? Aquele casamento era a coisa mais importante que ela já tinha feito; todo seu sonho de criança estava indo por água abaixo. “Eu ainda sou só uma criança”, ela admitia pra si mesma. Ela era ainda muito nova pra ter um compromisso com alguém, ela se sentia muito imatura.

Ela foi até o quarto e parou na porta, ele procurava alguma coisa debaixo da cama. Ela viu que ele havia jogado no chão todos os livros dela que estavam em cima do guarda roupa, todos os livros que ela tinha ganhado de tanta gente que ela gostava.

-- O que você tá procurando aí? – ela disse ainda com raiva pelos seus livros – Você não tava indo embora? Saia do meu quarto! – as palavras simplesmente saíam de sua boca. Ela se sentiu mal; parecia que ela não queria se reconciliar, parecia que seus livros eram mais importantes do que ele. Isso fez ela repensar o que ela sentia por ele. Tinha sido real?

O fato de ela perceber que tinha sido criança era sinal de amadurecimento? Ela era agora mais madura pra ver que o sentimento que ela sentia era um sentimento infantil? Ou ela estava sendo infantil em se perguntar isso.

Jogada no canto estava aquela velha jaqueta da fórmula 1. Ele a pegou e olhou pra ela como quem diz “pra que eu preciso de você?”; parecia que ele gostava mais da jaqueta do que dela. Ou ela só sentia isso pra inocentá-la quanto ao que ela sentia pelos livros?

Ela precisava de tempo. Se ele ficasse mais um minuto ali, ela ia explodir. Ela sentia que precisava ficar sozinha. Ele nunca ia entender o que ela tava pensando, ele sempre foi estúpido com ela; ele nunca ligou muito pra ela.

“Deixe-o ir” ela dizia em seus pensamentos, “você nunca precisou dele. Você foi ingênua de acreditar nele – ele nunca gostou de verdade de você”.

-- Ótimo. To indo. Volto busc...

-- Não! – um milhão de coisas passou em sua cabeça, ela não podia deixá-lo ir, eles precisavam de uma segunda chance, mas ela não sabia o que dizer; ela via em sua cara, ele estava decidido, ele não gostava mais dela. Ela achou melhor deixa-lo, se ele quisesse voltar, ele sabia que ela estaria esperando. – Você pode ir. Enquanto eu estiver aqui, você não volta... “eu sei”, acrescentou em pensamento. Ela não sabia, na verdade.

“Ele não vai voltar, Vivian, você sabe disso”. Ela via a raiva no rosto dele, parecia que o que ele menos queria era ficar mais tempo ali. Ele respirou fundo, ele queria dizer alguma coisa; ele queria xingá-la, ele queria dizer tudo que está entalado na sua garganta há tempos.

Ele estava pegando as chaves do carro. Era verdade: ele tava mesmo indo; ele tinha ido longe demais. Até agora ela tinha esperança de que ele só estava fazendo cena, que ele meter um palavrão e ia tomar um banho gelado; ele já tinha feito isso antes. Ela precisava dizer alguma coisa, faltavam-lhe palavras. Ele tava indo embora e ela não conseguia fazer nada pra impedi-lo.

-- Tchau, Vivian – ele tentava segurar a raiva, ele queria dizer muito mais do que isso. Ela queria que ele tivesse dito, pelo menos ela saberia o que ele pensava, pelo menos ela poderia tentar impedi-lo, ela teria argumentos...

Ele saiu.

Aflorou nela um sentimento de raiva de si mesma. Ela queria gritar. A menina tinha sido malcriada e merecia umas palmadas. Ela chutou a porta com toda força que conseguiu reunir. A porta se fechou tão forte que derrubou um quadro da parede. Ela estava caída de joelhos, lágrimas escorriam na sua cara, ela esmurrava o chão, ela não sabia o que devia fazer.

*

Ele dirigia sem rumo. Tanto fazia pra onde ele estava indo. Logo ela ia ligar e ia chamá-lo de volta. No final, ele sabia, tudo ia ficar bem.

Ele não estava conseguindo se concentrar; sem perceber, estava cometendo pequenos erros ao dirigir. Estava furando o sinal vermelho quando quase atropelou um ciclista; estava parado no meio da faixa de pedestres, tinha acordado de um transe. Estava muito longe de casa. Mas ele não tinha mais uma casa. Ele não tinha mais uma esposa. Ele não tinha mais pra onde ir, não tinha mais pra quem voltar.

Não era a primeira vez que seu orgulho tinha falado mais alto. Há alguns anos tinha brigado com seu pai; ficaram dois anos sem se falar. Ele sabia que o que faltava era só um pedido de desculpas, qualquer um que fizesse isso acabaria com a briga e eles voltariam a ser felizes como pais e filhos deviam ser. A culpa não era dele, seu pai sempre tinha sido estúpido demais, nunca ouvia o que ele tinha pra dizer. Se alguém tinha que pedir desculpas, esse alguém era seu pai.

Os olhos de Gabriel estavam marejados de lágrimas. Sentia saudades de seu pai. Ele tinha morrido antes de fazerem as pazes. Ele não conseguia se perdoar por isso.

O velocímetro marcava 140 km/h; ele estava na rodovia, seus instintos o estavam levando pra cidade onde seu pai morava. Ou simplesmente o levavam pra longe de Vivian.

O que será que ela estava fazendo uma hora dessas? Por que ainda não tinha ligado? Alguma de suas amiguinhas devia estar lá, consolando-a e dizendo pra que ela o esquecesse. Mas ele sabia que ela não ia esquecê-lo, não depois de tudo que eles tinham passado juntos.

Ele se assustou quando um caminhão apareceu de repente na sua frente. Sem perceber, estava rápido demais; dirigir sempre foi tão automático, ele nunca precisou prestar atenção. Mas agora não conseguia; ele não conseguia parar de pensar nela.

“Tchau, Vivian”, sua própria voz ecoou na sua cabeça; ele via a expressão não cara dela. O que ela quis dizer com aquilo? Parecia que ela o olhava com pena... Agora parecia tão óbvio que ele devia ter esperado mais um segundo e tê-la ouvido falar. O que diabos ela quis dizer com aquele olhar? Ele não tinha deixado ela falar, ela poderia ter dito qualquer coisa. Desde que o amava até que o odiava. Mais uma vez seu orgulho estava destruindo sua vida.

*

Tava esfriando. Ela olhava na janela. Devia ser umas dez horas da noite. Do alto, no sétimo andar, ela apreciava as luzes da cidade. Um par daquelas milhares de luzes eram do carro de Gabriel. Como ela queria que ele estivesse voltando. Ela o receberia de braços abertos. “Ele sabe que eu to esperando, não preciso nem chamar”. Ela estava com o telefone nas mãos. Ela andava de um lado pro outro do apartamento, que parecia gelado, como se ele tivesse levado consigo todo o calor.

Era melhor não pensar nele agora. Ele saiu, mas ele volta. Ele só precisa de um tempo pra ele. Ela estava nervosa. Instintivamente ela foi até a cozinha e preparou chocolate quente. Chocolate a acalmava; quando era criança seu pai lhe dava chocolate quando ela tava com medo de alguma coisa, ou quando alguém brigava com ela.

...Ela definitivamente não tinha crescido; ainda era aquela menininha mimada.

Sem saber o que fazer, ela se encostou no parapeito da janela. Sentia-se perdida, indefesa. Não queria chamar ninguém pra ajudá-la, não queria admitir sua fraqueza, não queria admitir que precisava ter sempre alguém por perto. Não queria assumir que ainda agia como um bebê.

Ela tentava imaginar o que ele estava pensando; onde ele estava. Ele estava pensando nela, não havia duvidas; bem ou mal, ela não fazia idéia.

*

Ele parou o carro no acostamento. Aquilo tinha sido tão real. Como se estivesse acontecendo na sua frente, ele viu ela se jogar da janela do sétimo andar. Ele sabia que ela era capaz disso. A imagem dela morta por sua causa o fez acordar. Ele não podia deixar que mais alguém morresse sem ele poder se desculpar, e dessa vez suas desculpas poderiam salvar uma vida.

*

Reunindo suas forças, tentando reunir toda a coragem de uma criança parada num trampolim pronta pra pular, ela pega outra vez o telefone: precisava ligar pra ele. Enquanto discava, subitamente ela sentiu: ele estava voltando pra ela, estava a toda velocidade; e, como uma faca perfurando seu coração, ela o viu, como que diante de seus olhos: ele tinha batido o carro. Ela o tinha visto: ele estava morto.

*

-- Dane-se o que você pensa! Se é isso o que você quer, eu vou embora! – Gabriel se sentiu mal ao dizer isso.

-- Claro que você não vai, meu amor. – Disse Vivian, com a ingenuidade de uma criança.

Ele não ia admitir que ela tinha razão. -- Então pare de ser orgulhosa, mulher!

Vivian sorriu.

willian pinheiro
Enviado por willian pinheiro em 26/07/2007
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